sábado, 2 de outubro de 2021

Silvana Guimarães - 6 poemas

 


                                                 trapézio

 

a manhã nasce num gesto escuro

quando a espera se revela

inútil como um útero

que não sangra

 

o corpo incauto põe-se

de tocaia: aguarda outra deixa

para se jogar

e ignora o calafrio

 

esse arrepio entre o umbigo e os seios

essa dor terebrante no monte de vênus

 

anunciam

 

todo amor dilacera


 

flamboyant

 

de novo enflorece como há longos anos:

nódoa cor de sangue desafia o azul sem nuvens

 

um naco de delírio ronda a paisagem

instala o passado na varanda e declara

 

é tempo de paixão

 

folhas flores um rumor um desvario:

a voz que sussurrava

entre gemidos e safadezas

"meu doce"


 

bolero

 

haverá uma esquina onde vão se encontrar

esfolar-se em um passado de asas feridas

escutar a música de uma partitura vazia

 

nenhum dos dois vai mencionar palavras

como ruptura mágoa desavenças tempestade

amargor ruína asfixia e a pior delas: _______

 

vão insistir nos seus melhores ângulos

nos finais felizes das velhas fotonovelas

teimar outra vez em fogo lento & brando

 

haverá outros domingos outras esquinas

numa delas — afinal — vamos nos despedir:

como uma menina antiga e um menino tonto

 

 

natureza urbana

 

no centro da mesa a

velha fruteira guarda

os boletos a pagar:

 

arranjo de frutas & aflição

para sonata de insônia

 

 

furores

 

a prima C. despedaçando no meio-fio a cabeça de louça da minha primeira boneca

os dentes de leite

a apatia da Santíssima Trindade

a cor branca

o corpo de Hitler descendo aos infernos

o vestido do primeiro baile, de veludo, me consumindo

o fogo que arde sem se ver

o silêncio de Guantánamo

um gato molhado

a letra A

o último tango em Paris

o olho amputado de Abu Ghraib

a sandália havaiana do atropelado revirando-se pela avenida

as jaulas

uma mulher morrendo por lapidação na Arábia Saudita, Paquistão ou Nigéria

a banda de música do 11° Batalhão de Infantaria de [ilegível]

às 12h31m na Av. Paulista

o tempo: as rugas os fracassos os vícios: o tempo

o terceiro movimento da Nona de Beethoven

o responsório de Santo Antônio

as quintas-feiras

a hipotenusa

play it once, Sam, for old time's sake

a sombra da solidão no escuro

o poema As Coisas, de Borges

o signo de Escorpião

a distância entre o estampido do revólver e a parede

a palavra in-can-des-cen-te

Genaro, quando abro as pernas e deixo-o entrar

 

habeas corpus

 

nada como a esperança para curar as dores

de uma era oca: beco da morte-sem-saída

 

nada como o ódio para acelerar o rumo de

uma história infeliz de busca & apreensões

 

[quando a minha fome beija a sua sede

meus olhos se encontram com meus olhos

 

minha alma fareja o que sobrou dos restos

mais humanos do corpo ultrajado: o meu]

 

descarregaram a ira em apenas um que era

multidão: ela atira tinta em vez de sangue

 

aqui não é paris: mas a estrela brilha sobre

os ladros de ocasião: dizem que vão pegá-los

 

que venham os bárbaros: inda que seja tarde

que cheguem com mais fúria: com mais medo

 

Silvana Guimarães. Escritora, nasceu em Beagá/MG, onde vive. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Participou de várias coletâneas e organizou algumas. Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte [www.germinaliteratura.com.br] e do site Escritoras Suicidas [http://www.escritorassuicidas.com.br]. Publica seu primeiro livro de poesia em 2020, se fizer bom tempo.

 Fonte: http://www.sermulherarte.com



Artur Gomes

FULINAIMAGENS

www.fulinaimagens.blogspot.com

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