quinta-feira, 31 de março de 2022

Coletânea Poetas Vivos

 


 de um caminho antes [e depois] do mundo

antes da estrada
tuas pegadas seguiam submersas no vão
não havia como decifrar as marcas
você não deixava pistas
apenas ia
como quem flutuava nos sonhos
passarinho solto entre as esferas
teus olhos caleidoscópicos
: dois mundos invisíveis

antes da partida
a tua pele tão outra
leve pluma indefinida
um breve percurso de respiros
tanto amor sufocando entre as costelas
feito um acorde dissonante
os ruídos das gentes
a tua face silenciosa
a música das esferas
as tuas fases em metades
até que o grito de um deus distante
te deu a última chamada
: não houve resposta plausível
para um [possível] recomeço na tangência do teu olhar

antes da chegada
nenhum caminho
nenhuma trilha
apenas tuas asas caindo no abismo derradeiro depois do mundo
entre sístoles e diástoles
um coração em conserto
tuas secretas asas
[descosturadas dos horizontes]
hoje planam em universos paralelos
: teu nome é liberdade e imensidão

Nic Cardeal
- 31.03.2022

 para Henrique Cardeal, aos oito meses de sua mudança de plano (e de nossas saudades)


palavra

 

com
começo
meio
e
fim
não necessariamente nessa ordem: palavra
pavrala
vrapala
lapavra
vralapa
lavrapa
lavoura

 

urbano

a  tv  ligada  dá  bom  dia
o  site  cedo  me  sitia
e  o  vento  vadio  ventania
no  nu  dilatado
da  vida  vazia

tudo
todo  tempo  parece  em  harmonia
o  carro,  o  cão,   o  mar,  o morro,  o  rato,  a  rodovia

só  a  vida,  quase  morta
viva !
passa  secundária
se  revelando  à  revelia

 

Celso Borges


Infovia



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sílica-gel
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e
200 Mz.
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dos
edo ram
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Luis Edmundo Alves


Sinfonia Imaginária

 

Ela põe um beijo fálico
Em minha face, lira líquida
Traz um sino de vertigem
Jubiloso sigilo
Vejo esse ganido na madrugada:
é um demônio verde a levantar meu vestido

Emudeçamos todo desassossego
Com árias dadaístas
Um canto corpóreo, partitura de agonias
O noviciado do gozo, xamanismo
Está escrito no Livro primeiro do uivo que iluminou Buda:
minha vênus profética vulvando em teu falo que confabula

O inventário do tempo
Foi comungar no Cabaré Místico
É teu verso?
Delira-mo
Sem paletó de poeta pixote
Derrama teu inaudito vinho, menino lírico
Azulei para um verde em dó maior
Encontre-me aquém do verbo

Os ciganos esconderam a Loucura
No espartilho da musa
Um piano turbulento anuncia
O êxtase dos anjos, canção apocalíptica
Sob o dossel do silêncio
Vejo-o enfim átomo
Infinito unido ao balé de meu delta
Os olhos do Sonho solfejam o delírio:
uma sinfonia imaginária para o amante metafísico

 

Anna Apolinário

Fonte: https://revistaacrobata.com.br/florianomartin/poesia/5-poemas-de-anna-apolinario/




“Não meta linguagem”

 

Hoje amanheci de poesia

mas não soube dizer,

esperei o verso cair do céu

mas ele quis continuar nuvem,

pensou que mais chuva inundaria meus rios

bueiros

buracos

beiras,

provocaria deslizamentos,

frases orações períodos inteiros

e viraria texto.

Entendo a condição de nuvem do verso:

metamorfose

pode ser planta bicho monstro gente: Deus.

chuva: apenas gota água lama onda lágrima.

Mas enquanto durar a estiagem,

aprendo a pilotar aviões

e a navegar nuvens.

 

Adriano Moura



PARA CRISTINA,

LEITORA DE PROUST

Proust mal lido, ou de ouvido
por fim me chega certo, pinçado
por sua leitura detida, em francês
num piscar de olhos mais rápida
quando trazido por quem conhece
para o sabor da nossa língua
o esmero daquele que descreveu
a cada folha, todas as suas nervuras
na frase serpentina que percorre
sem abrir mão de nenhum volteio
os sete volumes do tempo perdido
mas constantemente lembrado, pois
te atravessam, e, através de você
na sua tradução, que se superpõe
às outras, se transfere até a mim

Armando Freitas Filho



BORDADO

 

 

A noção do traço

 

sugerindo a presença da linha

 

e o manejo da agulha

 

            sendo cadência

 

após cadência

 

            no macio do pano branco

 

pra depois haver o risco duro de premeditadas paisagens

 

onde matizes de fumaças

 

dizem de sustos

 

            sortes

 

da palavra acorrentando-se

 

do desenho escapulindo entre dedos dormentes

 

            da pá

 

            do pó

 

            do pé violentando caminhos

 

            da propalada paz de papel

 

            dessa vontade de viver

 

            entre-mentes,

 

            humana-mente.

 

 

                                                              Amélia Alves





 



O afogado

nu

na lisura das primeiras ondas

O amante do pôr-da-so

Um deus

face ao sagrado

Um medo

face ao degredo



O afogado

dividido

entre o mar e a secura

Como se a morte fosse

a possibilidade do desejo

ou do deserto



O afogado

as algas beijam-no

Ulisses

face ao ciclope

Ninguém / musgo

O amante do sereno



O afogado

livre

não cabe

nas intenções

do gesto

ou

na perspectiva do Sábado



O afogado

agora

é o que se perpetua

no peixe

 

Tanussi Cardoso

 (Extraído de República dos Poetas; antologia poética. Rio de Janeiro: Museu da República Editora, 2005)




 por uma gênese do horizonte

 

 

hoje quero amanhecer com os afogados

implorar que voltem a caminhar comigo

penteá-los como se evocasse filhos

abraçá-los como quem pede um chamado

 

hoje à tarde vou morrer com os afogados

engolir a água que invadiu suas sebes

me arder no sal que arranhou suas malhas

e arranhar as minhas com o que partiu suas pedras

 

hoje à noite vou salvar-me entre afogados

ler em seus olhos alguma paz em riste

embora nas pupilas ouça ainda

uma voz rouca, para sempre dilatada

 

amanhã estaremos todos acordados

em mar profundo poderemos ser crustáceos

cavaremos até chegar ao mais escuro

ninho de pérolas e tudo será claro

 

para amanhã iluminar outro afogado

que na voragem de salvar-nos será salvo

e se unirá ao nosso fio interminável

de corpos sob o pôr/nascer-do-sol

 

e amanhã saberemos de que é feita

esta linha vista ao longe:

de um pouco de água e muito de nada

lavando por dentro o peito dos mortos

 

 

in por uma gênese do horizonte (2006)

 

 

Tradução

 

 

Dizer das paredes: rígidas

como os corpos que não cessam

deserrá-las,

mas não cessam de

erguê-las

pois o tempo é uma morada

quase intacta –

ora se desmonta,

ora está refeita.

 

Dizer das paredes: pálidas

como as noites ontem brancas,

pouco a pouco desbotadas,

quase iguais ao mobiliário,

aos motivos, aos retratos,

pois o tempo é uma tintura

que se gasta:

outra em que se invista

será só máscara.

 

Dizer das paredes: úmidas

como as páginas pelo rosto –

sobre a linha encanações

perfuradas,

infiltrações nos tijolos

das palavras,

pois o tempo

é uma espécie de rascunho

do que amanhã foge ao punho.

 

Dizer das paredes: versos

como as vigas que dão força

à estrutura, como cercas

que protegem nossa sala,

arquitetam nossas portas

e se soltam, como cal,

rumo aos quartos do sensível.

Pois o tempo se constrói

de cimento. E de invisível. 

 

Dizer das paredes: nós

como os pronomes pessoais

do caso incerto,

conjugados na labuta

da existência, pois o tempo,

mais que sólido, é ausência,

e por isso nos tramamos

rígidos, pálidos, úmidos, versos:

para preencher

 

nossos últimos restos.

 

 In Sete mil tijolos e uma parede inacabada(2004)

 

 romântico

 

 

sem repetir a mesma lenga-lenga

de sempre: “até que a morte nos separe”

ou “acho que encontrei minh’alma gêmea”

e qualquer outro papo assim, melado

que faz diabético o mais gordo poema

 

sem engolir o leite derramado

quando, à francesa, o amor disfarça e vai

embora, eu avisei: não faça tratos

com estranhos, sentimentos que nos traem

nas horas em que a gente arrisca planos

em vão e vem o pranto, um ai-ai-ai

 

curta seu love, tire uma casquinha

amar é sair junto, ao cine e após

tomar um ice cream numa pracinha

e nele derreter-se, ao sol, e a sós

lembrar: fugaz também a “rapidinha”

 

forjada à noite, num motel de quinta

onde, depois do orgasmo, o nojo, o podre

nos corpos que se afastam, se reviram

cada um para o seu lado, ufa, acabou-se:

“melhor pedir a conta, amor, se vista!”

 

In zero ponto zero (2010)

 


Igor Fagundes

 

Fonte: http://www.mallarmargens.com/2015/05/3-poemas-de-igor-fagundes.html




profissão de peixe

para rubervam du nascimento

 

em 1993 ele nadou para Santo André

veio no Alpharrabio nos mostrar o seu destino

1994 me fez nadar para Teresina

para falar Torquato Neto e Mário Faustino

esse peixe de natureza nordestina

              me ensinou que é possível

nadar contra a corrente  quando se quer

 nem precisa  cheirar flores do mal

muito menos despetalar o mal-me-quer

pode ter pedras no meio do caminho

pode ter lama nas asas do avião

ou no seixo  carcomido do carrinho    

que esse peixe quando se alimenta em cajuína      

                         tira a palavra da rotina

e a coloca no sagrado altar da epifania

como cronos previu que  algum dia

nadaria em  águas turvas   maresia

      para colocar cada poema

na dimensão de um Joice ou Dante

sendo ele nordestamente um imigrante

nadou para mais perto do nosso porto

singular  

para que o

olho gótico possa seus inversos no avesso alcançar 

 

Artur Gomes

Pátria A(r )mada

www.arturgumesfulinaima.blogspot.com



Fulinaíma MultiProjetos

www.centrodeartefulinaima.blogspot.com

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