sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Rafael Nolli - 5 Poemas À Beira de um Estopim

Rafael Nolli - foto de Fernando Rabelo 


                                Solidão

 

o homem na loja de conveniência
diante do freezer

 

(mais nada precisa ser dito:
sabemos que está de pijama
ou, pelo menos – percebe-se –
está com a roupa de dormir;

 

mais nada precisa ser dito:
escolhe – são duas ou três da madrugada –
o seu jantar: retira um enlatado
[confere a data de validade: faz uma careta
na certeza de não estar sendo observado])

 

de vez em quando
quando coça a cabeça
demonstra a dúvida que perpassa:
é tarde, a manhã já se insinua
que pesado, comer massa – ele pensa
e a cerveja, como está cara! – balança a cabeça

 

de qualquer forma
a forma com que vasculha as prateleiras
diz muito sobre ele: a palavra solidão
– ou uma que se assemelhe a ela –
deveria ser escrita nesse poema em alguma parte

 

(mais nada precisa ser dito:
o homem na loja de conveniência
diante do freezer
[são duas ou três da madrugada])

 

                                                17/10/19


Minha avó coando café

para minha mãe

 1

toda vez que alguém reza

em qualquer parte do mundo

para qualquer Maria

reza para ela também

 2

 uma vez a carreguei no colo

miúda, octogenária

pesava uma tonelada

estava carregando 

– de certa forma –

todo mundo que ela carregara

3 

por que ela era mãe da minha mãe

e de diversos modos foi minha mãe também:

 

quando perdeu o juízo 

– a idade avançada e o diabetes – 

virou filha da minha mãe

e assim – de alguma forma –

foi minha irmã também:

 

a ordem das coisas invertidas

ou definitivamente alinhadas

 

                        07/08/17

 

 Os Mortos da Véspera

 

uma nova guerra se anuncia
antes da chama da anterior se apagar

 aqui havia uma casa

e há fumaça escapando de seus escombros: 
talvez alguém tenha sido feliz 
onde agora só há destroços

 uma nova guerra se anuncia

antes que as crianças
– que mal sobreviveram à última guerra –
tenham tamanho suficiente para empunhar uma arma

ou saibam amarrar o cadarço do coturno

 um avião risca o céu, anunciando

 (ainda sequer enterramos os mortos da véspera)

 

 Memória 

 

Nunca te esquecerei

diz o amante ao objeto amado

os amigos que se separam

a mãe ao filho que parte

(uma viagem, a morte

a roda do acaso)

 

E ficam nebulosos 

transportando a ideia

(única forma de não olvidar)

até que chegue o momento

de serem esquecidos

 

ou transportados

 

Manda que estas pedras se tornem em pães

 1

 a mulher vestida com farrapos

gritava “acuda!” “acuda!”

enquanto dois cães

prestes a atacá-la

ladravam ferozmente                                       

se movimentando em círculos

como se tivessem uma estratégia

& não fossem uma pilha de nervos

guiados pela fome

 2

 o pão em sua mão

dormido de tantos e tantos dias

desatando a fúria da matilha

 as pombas, no fio de alta tensão

– prevendo as migalhas (espólios da 

guerra) –

esperavam a hora de agir

 3

 “Acuda!” “Acuda!” a mendiga gritava

já completamente dominada:

as costas de encontro com a parede

um cão agarrado à barra da saia

outro, babando de raiva, rosnando

cobrindo a retaguarda

 Mas ninguém acudia:

suas vidas não dependiam daquele pedaço de pão

embolorado

 

                                        Rafael Nolli

  

Rafael Nolli é professor, formado em Letras e Geografia.

 Publicou: Memórias à Beira de um Estopim (poemas, 2005, JAR Editora), Elefante (poemas, 2013, Coletivo Anfisbena), Gertrude Sabe Tudo (infantojuvenil, 2016, Editora Gulliver), Ao Pé da Letra (infantojuvenil, 2017, independente) e Sr Bigodes era o seu Nome (infantojuvenil, 2021 LAB).

Contato: nolli@bol.com.br



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(22)99815-1268 – whatsapp

Artur Gomes

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