o homem na loja de conveniência
diante do freezer
(mais nada precisa ser dito:
sabemos que está de pijama
ou, pelo menos – percebe-se –
está com a roupa de dormir;
mais nada precisa ser dito:
escolhe – são duas ou três da madrugada –
o seu jantar: retira um enlatado
[confere a data de validade: faz uma careta
na certeza de não estar sendo observado])
de vez em quando
quando coça a cabeça
demonstra a dúvida que perpassa:
é tarde, a manhã já se insinua
que pesado, comer massa – ele pensa
e a cerveja, como está cara! – balança a cabeça
de qualquer forma
a forma com que vasculha as prateleiras
diz muito sobre ele: a palavra solidão
– ou uma que se assemelhe a ela –
deveria ser escrita nesse poema em alguma parte
(mais nada precisa ser dito:
o homem na loja de conveniência
diante do freezer
[são duas ou três da madrugada])
17/10/19
Minha avó coando café
para minha mãe
1
toda vez que alguém reza
em qualquer parte do mundo
para qualquer Maria
reza para ela também
2
uma vez a carreguei no colo
miúda, octogenária
pesava uma tonelada
estava carregando
– de certa forma –
todo mundo que ela carregara
3
por que ela era mãe da minha mãe
e de diversos modos foi minha mãe também:
quando perdeu o juízo
– a idade avançada e o diabetes –
virou filha da minha mãe
e assim – de alguma forma –
foi minha irmã também:
a ordem das coisas invertidas
ou definitivamente alinhadas
07/08/17
Os Mortos da Véspera
aqui havia uma casa
uma nova guerra se anuncia
ou saibam amarrar o cadarço do coturno
um avião risca o céu, anunciando
(ainda sequer enterramos os mortos da véspera)
Nunca te esquecerei
diz o amante ao objeto amado
os amigos que se separam
a mãe ao filho que parte
(uma viagem, a morte
a roda do acaso)
E ficam nebulosos
transportando a ideia
(única forma de não olvidar)
até que chegue o momento
de serem esquecidos
ou transportados
Manda que
estas pedras se tornem em pães
1
a mulher vestida com farrapos
gritava “acuda!” “acuda!”
enquanto dois cães
prestes a atacá-la
ladravam
ferozmente
se movimentando em círculos
como se tivessem uma estratégia
& não fossem uma pilha de nervos
guiados pela fome
2
o pão em sua mão
dormido de tantos e tantos dias
desatando a fúria da matilha
as pombas, no fio de alta tensão
– prevendo as migalhas (espólios da
guerra) –
esperavam a hora de agir
3
“Acuda!” “Acuda!” a mendiga gritava
já completamente dominada:
as costas de encontro com a parede
um cão agarrado à barra da saia
outro, babando de raiva, rosnando
cobrindo a retaguarda
Mas ninguém acudia:
suas vidas não dependiam daquele pedaço de pão
embolorado
Rafael
Nolli
Rafael Nolli é professor, formado em Letras e
Geografia.
Publicou: Memórias à Beira de um Estopim (poemas, 2005, JAR Editora), Elefante (poemas, 2013, Coletivo Anfisbena), Gertrude Sabe Tudo (infantojuvenil, 2016, Editora Gulliver), Ao Pé da Letra (infantojuvenil, 2017, independente) e Sr Bigodes era o seu Nome (infantojuvenil, 2021 LAB).
Contato: nolli@bol.com.br
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(22)99815-1268 – whatsapp
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Gomes
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