terça-feira, 12 de abril de 2022

Coletânea Poetas Vivos - Nic Cardeal

 


AOS TEMP(L)OS ESTRANHOS

 

A partir de agora saiamos de casa só com a alma,

deixemos guardados nossos corpos no armário,

– não saiamos do armário – será mais seguro nossos ossos intactos no armário! –

Nossas vozes deverão silenciar no fundo da gaveta,

não saiamos de casa ostentando gargantas,

sufoquemos nossos sons mergulhando em silêncios! 

A partir de agora deixemos nosso sangue estocado na adega,
junto ao vinho tinto, ao vinho branco,
do contrário estaremos sujeitos 
ao asfalto sangrado em vermelho!

A partir de agora não mais se demora – dia ou noite – entre idas e vindas pela avenida!
Guardemos nossos risos no bolso da calça, 
no bolso do paletó, dentro da bolsa,
escondido atrás da gravata! 

Não será permitida a gargalhada tranquila
a brindar a vida em espantosas alegrias!
Não será de bom grado 
o grito, o livro, 
a revolta, a rebeldia,
a poesia espalhada na esquina,
nem a palavra escrita fora da linha!
Não será de bom gosto que sejamos letrados, 
nem alterados em nossos estados de amor,
de ânimo ou de humor!

 Nossos gestos só serão abençoados

se colocados na ordem estabelecida!
Nossas vidas só serão poupadas 
se pousadas em fila!
Desse modo, nos bons modos,
homens decentes, cordeiros, ingênuos,
guardados 'a salvo'
– bons idiotas desses temp(l)os estranhos!

 (A partir de agora saiamos de casa 

semeando resistências à revelia!)

 

EFÊMERAS ETERNIDADES

 

É mais tarde do que cedo
nas beiras do meu tempo que se estreita 
entre as curvas dos meus abismos.

Não faço malabarismos entre horas e segundos
pois entre ambos
respeitosos minutos se esgueiram
suspendendo fios compridos 
de invisíveis eternidades.

É certo que viver também é isso: 
esticar ao máximo futuro do indicativo
qualquer suspeita de pretérito tão imperfeito.

É preciso um dia fora do tempo.
Talvez um mês de esquecimentos.
Quem sabe assim
meus relógios se atrasem
para um passeio sem pressa
nas esquinas de todas aquelas que fui em mim.

Darei de cara comigo
brincando de infinitivos
lá bem distante
onde te encontrarei – espelho de uma de mim –
sonhando gerúndios em prelúdios e prenúncios
de um verbo ser mais que perfeito.

 

ENTRE OS DENTES

 Hoje cedo, ao abrir os olhos em frente ao espelho

deparei-me com uma imensa saudade estacionada entre os dentes.

Não pude compreender, em princípio,

o porquê de estar ali parada a minha saudade,

se sua morada em mim é tão mais funda, tão mais densa, dura, 

feito gordura localizada nas curvas das veias carótidas

das velhas ideias retrógradas 

que vezes por outras me teimam a insistir num verbo presente,

quase imperativo, anunciando pretensos subjuntivos desconhecidos.

Depois de tentativas vãs e demoradas sutilezas, 

desisti de extraí-la até a raiz

– a saudade grudada entre os meus dentes, 

vinda desde o centro bem de dentro,

arraigada às minhas vísceras, florescera até as beiras da minha boca,

procurando um sol, um vento, um canto, um verbo, um verso,

para dizer no íntimo, no ínfimo, no mínimo,

o máximo sentido do amor –.

 

Agora que a noite já veio, fecharei os olhos no mais puro devaneio,

mas os dentes estarão outra vez disponíveis à vontade da saudade,

quem sabe mordam vorazes os meus sonhos,

à procura da presença adormecida

– fiel depositária dessa saudade tensa, intensa,

feito tortura localizada, degrau a degrau,

das minhas estranhas escadas internas

onde ecoa a voz da saudade – entrementes –.

 

Escrito em 2018 (publicado na Antologia Comemorativa Dia Internacional da Mulher Mulherio das Letras Portugal – Poesia, org. Adriana Mayrinck, Lisboa/PT: Editora In-Finita, 2019)

 

 Poemas escritos em  2018

 


C(ASAS)

 

Eu tenho c(asas) que me habitam os olhos,

verdadeiras vilas com quintais por trás das retinas,

telhados que acolhem chuvas esparsas,

uns ventos, uns pássaros em descanso das asas,

chaminés exalando fumaças em busca de nuvens espessas.

 Quisera pudesse trazer os meninos e meninas perdidas

a habitar minhas casas por trás das retinas,

que corressem livres, cantantes, felizes

esses meninos e essas meninas –

entre o balanço das redes e a colheita das amoras,

fazendo estrelas brilhantes nos céus dos meus olhos depois do poente...

 Eu tenho paraísos secretos depois dos desertos dos meus pensamentos,

depois das costas, das omoplatas,

dos contornos das minhas estradas internas tão tortas,

passeios noturnos indo dar na janela da alma,

quem sabe ali o mundo estivesse sempre bonito

e eu pudesse esconder toda essa ‘minha gente’ a salvo.

 Então nós faríamos festas nas vilas, nas casas, nas folhas, nos ventos,

e ‘os meus meninos e as minhas meninas’ seriam crianças felizes,

sem medos, sem tempo, sem susto, sem limbo,

amarelinhas desenhadas nas bordas, nas beiras,

no centro, nos cirros, nos nimbos,

cirandas e rodas e poesias e prosas,

risadas rosadas, espécies de esperanças eternas

em casas etéreas com tetos tão ternos,

deixando bem longe as tristezas do mundo concreto...

 Eu tenho um vaso de sonhos brotando na sacada da alma encharcada

– depois da lama, além do lótus –

haverá de nos caber um respirar em amor

onde ‘meus meninos e minhas meninas’

sejam sementes e brotos e flores e frutos

de um deus mais decente.

 

MANUFATURA DE URGÊNCIAS

 

Depois que se amassa o pão

deve-se deixá-lo descansar

na lenta hospedaria das horas

– não se estanca o tempo quando ainda cresce esperança –

 Há um mundo onde crianças morrem de fome,

gargantas procuram água no vazio da garrafa.

 Procuram-se planetas habitáveis nos vãos das galáxias,

nos vãos das nossas ausências

um jardim do éden de outro jeito:

morcegos imóveis descansando do voo em cavernas escuras,

pólens aguardando o ofício das abelhas ao meio-dia,

águas rasas, águas fundas, águas azuis, humanos transparentes.

 Na pedra desbastada

a gota necessária tanto fura que rasga até a alma.

 Depois do pão repartido

borboletas voltarão:

no casulo que um dia foi casa

o futuro costura asas.

 

Escrito em 2019 (publicado na antologia O Livro das Marias II – Coletânea de Poesias e Contos, org. Jeovânia Pinheiro, São Paulo: Ixtlan, 2020)

 

NO REINO RASGADO POR DENTRO

 

Depois das sete
a gente segue a linha reta
na estrada torta,
os becos estão escuros
como buracos negros para depois dos muros.

 

Nossos corpos desgastados
contrastando fomes já costumeiras pelas calçadas,
nossas almas derrotadas 
destilando indiferenças corriqueiras.

 

As brechas dos nossos abismos
espiam meninos aguardando novos tempos,
enquanto os homens atiram balas
em ‘oitenta’ tiros destemidos,
avisando escusos reinos
no perfurar das alheias desgraças.

 

Penduramos esperanças em varais rasgados:
quem se importa
se a estrada ficou torta
depois da linha reta...

 

Já era noite nos tempos cinzas
quando nossas certezas foram mortas,
no descascar das feridas 
outras tantas histórias perderam a rota.

 

Diluídos em moedas falsas 
não valemos nada 
– somos apenas o povo do reino – 
quem se importa
se depois das sete
o povo cala na própria desgraça
as dores em preto e
[branco] preto.

 

(Nesses tempos insuficientes 
andei perdendo o jeito para lidar com superfícies 
– o meu sonho morava por dentro –
no fundo... o poço)

 

Poemas escritos em 2019

 

COMO DESENHAR O VENTO

 

Antes do vento

você deve sentar-se à beira

tomar gosto por coisas voantes

saber distinguir o barulho de asas ao longe

cuidar para não colocar os pés sobre as miudezas do reino

então olhar o horizonte devagar

bem devagar

de um modo tão específico

que seja possível traçar as inquietudes do sopro

 

Sim, todo vento é uma soma incalculável de sopros,

cada sopro

uma ondulação da vida feita de sopros,

quem sabe de algum deus

[mas não te enganes, não o teu deus, nem o meu deus!] –

 Depois do vento

você deve sentar-se à beira

tomar tento por movimentos de dentro

saber conhecer de nuvens

e divagar

bem devagar

de um modo sereno

como se fora a rotina das borboletas

levando consigo, em saltitantes caminhos,

a lembrança da lentidão das lagartas.

 

Ainda que o vento não chegue tão cedo

você deve sentar-se à beira

e ouvir o sopro

– o suave murmúrio de um deus

a dizer que viver

não passa de um mero intervalo

entre alguns dos teus melhores infinitos –

 

Só então terás desenhado o vento.

O sopro.

À beira do teu tempo.

 

DO FIO À FONTE

Ando inundada de águas,

 dessas que escorrem pelos dedos e a gente nunca consegue segurar por inteiro,

 daquelas que caem dos olhos, ou se guardam por lá inquietas, aguardando tempestades maiores para o súbito pranto,

 das que nos guardaram a todos, um a um, no ventre do outro mundo, salvando-nos de apuros, apertos, receios, abortos, tentativas vãs de subornos súbitos de escapar deste mundo,

 das outras, as que descem nervosas, carregando todo o estranhamento do céu paralisado no desejo de chão,

 das águas recém-nascidas da correnteza, no grande espanto da vida a espiar o riacho que persegue o rio em cada inundação,

 daquelas águas que já foram um fio e hoje se enrolam em novelos a caminho do mar,

 das que mal se movem, em profundos azuis, guardando secretos vestígios de um tempo cansado de nãos,

 das revoltas, alvoroçadas, estranguladas na solidão imensa da garganta estreita que sufocou um grito tão tardio,

 dessas águas feitas de prantos, de medos guardados em cantos escuros, de pânicos esgarçados em delírios urgentes,

 daquela que me aguarda, serena, suportando o peso do barco na planura quieta do horizonte, até o dia do meu desaguar da vida em outra Fonte.

 (porque nós todos somos um fio da Fonte)

 

Poemas escritos em 2020

 

 DESIGUAL

 

 

Dize-me

de que é feita a tua carne,

essa que te faz maleável ao teu corpo em movimento,

de que cor é o sangue que te corre pelas veias

e que te dá o alimento ininterrupto,

de que é feita a tua alma,

aquela que te faz consciente de ti mesmo,

que te dá a razão, os sentidos, a percepção de mundo,

para que te faças assim,

vil herdeiro de tantos atos insanos, e profanos, e perversos, e regressos,

a ponto de dilacerares teus próprios pesares e te considerares superior?

 

Dize-me

de que material és feito

para te julgares senhor das mil razões

e proprietário vitalício daquela que te pariu?

Com qual dignidade te vestes

para bradar tua superioridade às custas da exclusão diária de gênero e de raça,

quando te apossas do verbo mais alto

e gritas tua violência fora de todas as medidas

na casa que te dá guarida,

na mão que te prepara o pão de cada dia,

nos lábios que te beijam

e no coração que te entregou todo o afeto outrora tão sonhado?

 

Dize-me

por que te atreves a violar teu lar,

por que razão te atinas a querer assassinar aquela que pensas ser tua,

por que arrancas sua roupa e a pões nua sobre a cama,

em busca de um prazer de ‘rua sem saída’,

e segues a matá-la pouco a pouco, dia a dia,

pelas beiras, ao redor, por dentro e por fora,

até o golpe derradeiro,

como se fora ela propriedade tua,

a mulher que te pôs a mesa e te deu o alimento de toda a vida?

 

Dize-me

o que pretendes com teu dedo em riste

                           com tua agressão em salto

                           com teu membro em surto?

 

De que lado irás cair quando estiveres em súbito pranto,

arrependido de um machismo estreito,

de um racismo perverso

que te encurralou ao chão?

             

Dize-me

por que mais de 60% das mulheres assassinadas no Brasil

quando raça encontra classe social –

são mortas por serem negras

                  por serem negras pobres

                  por serem negras pobres mulheres?

 

Quem és tu, afinal,

além de um efêmero humano

passível de descarte pelo tempo e pela vida

– aquela mesma que te foi dada,

mas que te pode exigir devolução imediata,

a qualquer tempo, dia ou hora? –

 

Dize-me

por que

para que

até quando?

 

OUTRORA

 

Tantas vezes os dedos escreveram tua sina

nem percebeste a razão dos caminhos secretos depois do chão

apenas ias, dia após dia, ias

os labirintos estavam por toda parte

– quantas vezes te perdeste em solidão? –

 

 

Tantos dias foram deixados à míngua,

sequer te atrevias a erguer os olhos a procurar saídas,

eras como uma montanha rígida em matas profundas,

nem te arriscavas a buscar outros horizontes,

apenas respiravas, incólume ao passar do tempo

– quantas auroras te encontraram desconhecida de ti mesma? –

 Bem sabias que a vida é sempre por um fio,

de nada adiantou consultares teus oráculos,

tuas cartas de tarot tão antigas, tuas runas já lascadas pelas beiradas,

ou aquela cigana que te pedia a mão aberta e te avisava, insistentemente

: aqui há um final de linha, uma bifurcação, um gerânio ressecado por falta de cuidados, uma espécie de diário com páginas rabiscadas e depois rasgadas, faltando palavras, faltando palavras, faltando palavras...

[ela não parou mais de repetir, até sumir na esquina]

 Te foste num rastro contínuo de ondulações pulsantes,

de nada adiantou teu nome tatuado na eternidade,

– e eu nunca mais soube dizer [teu nome] –

 Já não posso caminhar por labirintos [se insisto, perco o tino]

em minha memória tua sombra é feita em sépia

e tuas palavras me invadiram

[aquelas que te faltaram]

– quantas taças de mar tu bebeste, antes do teu juízo final sobreposto em inundações de azuis? –

 a cigana não me disse, mas eu soube que palavras inquietas sempre voltam em sonhos

: tu foste aquela de mim que já viveu outrora!

 [Hoje eu lembrei – e elas voltaram, as palavras!]


PARTILHA*

 

"Quanto mais a matéria é, em aparência, positiva e sólida, mais sutil e laborioso é o trabalho da imaginação"

(Baudelaire, 'Curiosités esthétiques')

 

 

escavações na memória

buracos abertos em todos os cômodos

até encontrar o vazio

 colocar abaixo

a colher que conduziu à boca o gosto secreto

– mastigar silêncios necessários –

o cobertor que escondeu os sonhos bem protegidos

– aquecer saudades teimosas –

o lustre que acendeu a noite

– brilhar, continuar a brilhar a estrela-guia –

a xícara que guardou o café até esfriar

– sorver lembranças até o último gole –

o chamado longínquo que se evapora no vão

 

como se fosse ontem

a casa cheia de tempo

a mesa posta

um murmúrio atravessando auroras

gargalhadas súbitas

dando de cara com a cozinha tão viva

um jeito de ave, como ele ia...

uns passos de solidez altiva, como ela vinha...

 

como se fosse possível

guardarmo-nos abrigo em cada porcelana

e uma estratégia misteriosa

levando-nos à frente

porque o portão em breve será fechado

(e nossos passos não poderão retroceder)

 

o tempo material é linear

[as costuras finais deverão resistir ao esquecimento]

 

– a vida [sólida, líquida ou gasosa] é quase sempre ilus(traç)ão –

 

 2021 (inventário de esperanças desmembradas... porque eles – nossos pais – partiram e, em breve tudo será retrospecto)


SINA

 

Tão tarde para queimar a vela esquecida no altar da tua alma,

por dentro, os destroços de uma casa em ruínas

e uns dedos longos que escreveram poucos argumentos acima dos teus segredos:

tão breve o silêncio, sem qualquer possibilidade de dizer sobre o tempo que nunca veio...

 

[Aqueles que escrevem têm as unhas rasgadas pelos densos dos seus medos,

outros modos de percepção do que segue no limiar do absurdo,          

perscrutando dimensões de outros mundos,

onde devaneios são sementes germinando paraísos em um universo paralelo derradeiro]

 

Tão fina a folha quanto a asa da andorinha em lonjuras nunca percorridas,

assim te fazes, tu que escreves das coisas jamais vistas por outros meios

que não teus ecos silenciados pelo espanto!

Aquieta teus reflexos, suspende a tua angústia uma oitava acima,

desce os olhos de dentro ao peito mais profundo,

saberás legitimar tuas verdades na mesma medida da tua necessidade mais genuína:

– Tu és aquela que nunca termina! –

 

[Aqueles que consomem escrituras têm as asas apartadas dos seus dorsos,

outros meios de linguagem para abarcar os sentidos do coração:

a palavra – um silêncio feito de matéria visível que desanda distante da forma exata –

amplifica os sentidos nunca d'antes conhecidos]

 

Depois dos tempos, dos séculos, contornos ou regressos,

serás feita da mesma essência das unhas rasgadas pelos densos dos teus tantos medos,

das mesmas asas apartadas do teu dorso,

no melhor meio de linguagem do teu voo:

– Tu és aquela que aventura asas na imensidão! –


'SONHONÁRIOS'

 

dei para sonhar com palavras soltas, esguias, às vezes retilíneas

noutras, feito ouroboros, enrolando-se sozinhas, como se fossem autofágicas,

engolindo-se entre o início e seu fim,

sem necessidade de vírgulas, reticências ou pontos finais

 ora voam, bailando no éter como se fossem bailarinas de uma dança sem contexto

ora se fingem de montanhas alongadas e imensas, a engolir famintas os horizontes

outras vezes, fazem-se de vesgas, renegando lonjuras à vista

– não há necessidade de texto quando palavras já se fazem tão exaustas –

 quando estou desperta, por vezes emudeço, à deriva,

em silêncios sobrepostos sobre a cama,

então, há que eu faça da garganta meu refúgio solitário,

em fricção das cordas à procura de resgatar meus sons originários

 depois, ao dia já quase ao meio, é quando a epifania se completa:

as palavras – essa linguagem tardia do pensamento – vêm aos poucos,

esticando-se enfileiradas no contínuo da linha estendida sobre o papel

 às vezes nem chegam, vagam a esmo até a próxima noite

à espera do retorno da mesma [onírica] fome de sons

 [você conhece a linhagem do silêncio?]

 

 Poemas escritos em 2021

 

ESCASSEZ

 

Ando à procura de um novo modo de dizer sobre o mundo e esse meu outro 'planeta' que me mantém viva dentro de um corpo que também me é mundo.

Escorrem [como um rio largo sem fundo] os pensamentos, os sentidos, os perdimentos,

e já não acho graça em apenas traçar linhas retas sobre um tempo que se curva.

Há um labirinto ousado nascendo em meu dorso

e, vezes tantas em dores tontas, esqueço por que foi que me resultei na escrita.

Essa aridez, esse deserto, essa não-vontade da palavra:

mudez catatônica que me trava intacta sobre um chão sem caminhos.

Tornei-me inesperada, tardia, quase ausente,

não compreendo as razões para a imagem que me devora:

estou estilhaçada em silêncios sobrepostos à base do que me constitui a alma

– Sinto-me escassa de minha seiva –

[haverá outra vez aquela 'chuva' que semeia a palavra?]

 

TREINAMENTO PARA TEMPOS ABSURDOS

 

À janela, a claridade da tarde pede passagem

nuvens esparsas correm apressadas pelo céu

– não há treinamento mais intenso, magnífico [e absurdo] para o deus do ocaso

do que o cultivo de tardes à espera do poente –

 

Nenhum acaso será permitido ao tempo dos homens

já que as escrituras, oráculos ou runas

previram destinos tristes àqueles que renegaram suas origens

feitas de terra, água, ar, fogo

[e ventanias, tempestades, solidão e abandono]

 

Disse a sábia senhora das montanhas:

– Deixar os olhos dispostos ao breu,

buscar a noite com sofreguidão,

escolher estrelas brilhantes, distantes,

fazer do caminho um passo a seguir, apenas um, sempre mais um

– o caminho nunca será visível se não soubermos a razão de cada passo! –

 

Na janela as vozes se espalham,

aqui dentro

o silêncio fala a linguagem dos absurdos

e eu choro – por não saber traduzir –


REFÚGIO

 

Meu pai colecionava silêncios

– um olhar perdido nas distâncias –

minha mãe gostava tanto de rir!

[gargalhadas lindas as da minha mãe]

eu coleciono silêncios e sorrisos

                                       ou risos

                  às vezes gargalhadas

                                          [mais raras]

 

De silêncios

minha coleção é farta

de alegrias

minha coleção é tão pequena

 

Nestes tempos

a guerra é obstáculo imenso

a fome

o racismo

a violência

tudo o que dói

me dói

 

os homens me doem

aqueles que nada enxergam além do próprio umbigo

os que só sabem acumular dinheiros

à custa das misérias alheias

os que devastam florestas

em nome do agronegócio

os homens poderosos,

machistas, misóginos, homofóbicos

aqueles que veem mulheres

presas fáceis

– meros objetos do seu desejo –

hei de resistir

           a colecionar sorrisos

                                         risos

                                         quiçá gargalhadas

 

assim

ao olhar a fotografia

esqueço

por alguns segundos

das dores do mundo

(meu álbum é meu refúgio) 

 

Poemas escritos em 2022

 

Nic Cardeal

 

Nic Cardeal (Eunice Maria Cardeal), catarinense radicada em Curitiba/PR, graduada em Direito, é autora dos livros “Sede de céu – poemas” (Penalux, 2019) e “Costurando ventanias – uns contos e outras crônicas” (Penalux, 2021). Publicou textos em 46

antologias e coletâneas, no Brasil, na Alemanha e em Portugal. Faz parte do movimento “Mulherio das Letras” desde a sua criação, em 2017. Seus escritos estão compilados na página do Facebook, “Escrevo porque sou rascunho”. Possui textos publicados em diversas revistas e blogs eletrônicos. Também publica, como autora e colaboradora, na revista eletrônica ‘Revista Feminina de Arte Contemporânea Ser MulherArte’.


 

Fulinaíma MultiProjetos

www.centrodeartefulinaima.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sarau Campos VeraCidade

Sarau Campos VeraCidade   Dia 15 de Março 19h - Palácio da Cultura - música teatro poesia   mesa de bate-papo :um olhar sobre a cidade no qu...