quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Carolina Riger - De Temer A Morte - fragmento

 

De Temer a Morte

 

 

Carolina Rieger


Parte I

 

    Dueto

 

21.  Chão

 

3.  Um uivo

 

4.  Ao covarde

 

5.   Apolínea

 

6.  O gelo

 

7.   Tecelã

 

8.  Salário

 

9.  O dono

 

10.        Mulher

 

11.               Mordaça

 

12.             Te silencio

 

13.             O canto invernal

 

14.             Vigiar

 

15.              Moinho de sonhos

 

16.             Freedom

 

17.              De sonhos nas mãos

 

18.             Por Deus, João

 

19.             Passagem


20.           Grilhões

 

21.             Entorpecimento

 

22.            Mea culpa

 

23.            11 de setembro

 

24.            Ao fim da oração

 

25.            Unidade

 

26.            Mar bravio

 

27.            Guerra

 

28.           Cidade pétrea

 

29.            A fome e a sanha

 

30.           Espírito do tempo

 

31.             Imperativo intercambiável

 

32.            Cacos

 

33.            O que resta do trágico

 

34.            Pós-verdade

 

35.            Na lama

 

36.            As mulheres e suas crianças

 

37.            Guetos

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Todavia, deixarei estas páginas - porque quero datar a minha cólera.

Fogachos – Charles Baudelaire.

 

De Temer

Parte I

 

Dueto

 

o vento zomba da carne

espanca a pele e a anca

rasga à navalha a pelanca

o vento zumbe na cara

e esbraveja no ouvido

esfarrapa à farpa a entranha

vento e ventre a grunhir

vazando a víscera vazia

a fome e a noite fria.

 

 Chão

 

Sol a pino

sangue quente corre

às compras

afã enfileirado

prazer

embalagens cores

tilintam moedas

o vão dos dias entupido com produtos

comprar é ensejo entre desejo e dinheiro

talvez seja o último ano de décimo terceiro

há mais Natal para quem compra mais?

Sol a pino

ânimos quentes

é o Natal sobre a terra

a cidade inóspita é toda pedra, mas rasga desigual

descalço

depende de que lado da ponte se fenece

sobre o alicerce da fúria

lascivas s’enleiam penúria e desperdício

a vida circunda o dinheiro

sangue no olho... é assalto!

sangue escorre pelo asfalto

a calçada não absorve

fica o corpo

uma vida pelo carro

as compras continuam

escárnio no engarrafamento

o estorvo vai atrasar a ceia

o que não consome é escarro.


Um uivo

 

Quando o poeta se encontra no ponto mais baixo, o mundo deve realmente estar virado às avessas. Se o poeta não está mais autorizado a falar em nome da sociedade, mas apenas no seu, não resta mais dúvidas de que descemos à última vala.

Henry Miller

 

essa coisa de fazer poesia

e trazer tantos lobos para fora do covil

e lobas, todas no cio

e tantos e tantos vazios

ah, coisa vã que é fazer poesia

e que não fala, uiva

e chora e sangra

estrangeira e nativa

numa ilha igual a todas as outras ilhas...

essa coisa inútil que é fazer poesia

e ser um desnudamento tão íntimo

que de tão íntimo desnudamento

é igual em todos os falantes

ah, coisa inevitável

que é fazer poesia


Ao covarde

 

Da água estagnada espera veneno.

Willian Blake

 

a vileza constitui a fibra covarde

deixa seu limo por onde rasteja e se esgueira

nunca olha nos olhos, sempre de esguelha

cresce pelas costas

a sombra

fétida chega primeiro ao olfato

empunha ardis que não fez, que não faz

porque não tem mãos próprias

de infeliz, gani e cobiça

o riso e a alegria

do outro é o que lhe atiça

quer arrancar frutos que não semeou

rapina, quer mais do que precisa

senta-se em cima dos montes, empanturrado

tem fome por carne morta, esquelética

e prazer em terreno devastado

lança o veneno e espreita pela beira

incapaz de lutar, mata na surdina

ou manda

e foge acovardado.


Apolínea

 

“O caos é apenas uma forma que não compreendemos”

Henry Miller.

 

 

palavra é Sol do meio dia

no ápice lança sua máxima luz

quer descortinar todas as coisas

num feixe quase fisga o absconso

acena e escapa

no centro do firmamento

ilumina a estrada que leva ao encontro

de andarilhos

estrangeiros no desvario de dizer

a palavra arde inclemente

e queima e cansa

e enquanto revela, também mente

palavra, habitante do norte

mote da andança

mas no fim do dia

todos quedos na escuridão da noite imensa, infensa!  

palavra, crime que compensa!

é o que resta

ao poeta, ao pobre, ao pensamento

lavrar no crescente fértil

do coração

que transborda em tempo de cheia

quer traduzir o que corre pela veia

alquimia do Sangue em Sol em Som

dizer e desvelar

o vilarejo da  infância.

 

     

 


O gelo

 

Por que?

Por que nascemos para amar, se vamos morrer?

Por que morrer, se amamos?

Por que falta sentido

ao sentido de viver, amar, morrer?

 

Carlos Drummond de Andrade.

 

todo sorriso ofusca o ocaso

mas nos dentes brilham os polos

dentes de gelo, sorriso de apelo

ressoa um pedido de socorro

um frio que queima cada pelo

que recobre todo o solo

e a todo coração paraliza

impassível

glacial destino de tudo

esquecemo-nos enleados

aquecemo-nos

e amamos em movimento

de fuga do inexorável

vamos, aves de migração

até perder as asas no Ártico.

 

 Tecelã

 

debatemo-nos na teia

da tecelã de fome eterna

move-nos a fereza de escapar

para atarmo-nos em nó adiante

de sedoso tato

neon, a promessa do aeon

no fim do expediente

no fim de semana

do ano e da vida

a terra prometida

no dia cinco

no armagedom

no próximo gole

na sua braguilha

ou no futuro de sua filha

e aumenta o preço do gás

da água e do pão

“dê mais um pouco de si, meu irmão”

que termina

nas ruas, quem não dá mais

braços, pernas e dedos das mãos

olhos, estômago

o discurso e a crença

jorra na taça dos charlatões

que não há banquete sem sacrifício

e duvidar é grande ofensa

pois se é rito sagrado não é matança

é preciso fazer sua conversão.

 


Salário

 

é chegada a véspera

do juízo final

no vento o agouro

da hecatombe

espera e reza

não fuja, não tombe!

a cada um, a parte que cabe

que riqueza recompensa o espólio

partilha feita

aquém e além de nós

herança e legado

e se não foste convidado ao banquete

nem vinho, nem pão, nem peixe

todo quinto dia útil receberá sua condenação.


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