me tranquei na caverna com platão
pra enfrentar meus próprios males
não vi primata nem zapata nem dragão
ouvi o canto das sereias pelos bares
chamei pra briga o capeta de facão
senti o aço perfurando a carne mole
gritei bem alto um tremendo palavrão
chamei são jorge pra ajudar o filho pobre
daqui ninguém sai vivo nem com reza ou um milhão
um dia até o tolo acaba que descobre
perdi o medo de espelho e solidão
só levo a vida com a pele que me cobre
CHACAIS E HIENAS
a história sempre termina assim
os chacais – e também as hienas
saltam sobre o leão ferido
os chacais – e também as hienas
saltam sobre o leão ferido
para devorar sua carne – até o osso
os chacais – e também as hienas
saciam a fome atávica de séculos
e mostram os dentes pontiagudos
mostram os dentes pontiagudos
fiapos de carne entre os caninos
e riem seu riso de escárnios e ganância
e o riso de escárnio e ganância
é ouvido em toda a pradaria
toda a savana toda a cidade
as ovelhas balem nos currais os lobos
uivam nos cerrados as águias
apuram a visão no alto das árvores
o cheiro de carniça persiste por dias
vermes fermentam os restos de carne
e o couro do leão ferido se degrada
o vento crepita nos galhos secos
um silêncio – que não é paz nem trégua
se espalha pela pradaria savana cidade
a chuva não vem o sol é inclemente
a fome o escárnio a ganância persistem
e a história recomeça de novo e de novo
METAMORFOSIS
agora sou um cavalo
trotando livre pelos prados
brisa nas crinas, narinas
farejando o frescor da relva,
selva que se avoluma,
silvos de elfos, lumes
no limo liso das pedras,
riacho de água cristalina
agora sou uma égua
léguas além, batendo os cascos
no capim macio, no cicio
da tarde com mil sóis
que ardem, alastram luzes
sem nenhum alarde, sem
que se perceba, a alvura
do dia, céu diferente de ontem
agora sou um poeta
olhando a sombra que dobra
a esquina, sob o rápido
clarão da lua, antes
que a nuvem, cortina
de linho branco, a encubra
e revele o luminoso onde se lê:
minha loucura não tem cura
Volto da leitura do novo volume de poemas de Ademir Assunção com a sensação de ter sido levada em um estonteante travelling cinematográfico.
Sem cortes. Escrevendo alternadamente sob a lente de aumento precisa e sensível
de uma poética das minúcias ou através do telescópio de longo alcance do
registro histórico e social, o autor de Risca Faca nos descortina uma visão vertiginosa
do mundo – a de um artista fortemente marcado pela contemplação sobre o tempo e
a impermanência, enquanto, pelo viés da poesia, procura dar conta do nosso
cotidiano apocalíptico.
Claudia Roquette-Pinto
Ademir
Assunção é um poeta para todas as eras. Fazedor
e admirador da poesia em todas as suas facetas (e falsetas, em geral cheias de
humor): a música, a plasticidade, o logos. Faz com que todas convivam em
consonância. Ou dissonância, que é a sonoridade mais comum da vida. Ademir olha para o mundo como se
estivesse num bar, ao lado de Mallarmé e Bukowski. Suas aliterações não
pretendem somente criar um simulacro sublime do que vê, mas cravar-se como um
punhal no coração da vida.
Geraldo Carneiro
Ademir Assunção (1961) é poeta
e jornalista. Publicou 14 livros de poesia, contos, romance e jornalismo, entre
eles A Voz do Ventríloquo (Prêmio Jabuti 2013), Pig Brother (finalista do Prêmio
Jabuti 2016), Ninguém na Praia Brava, Adorável Criatura
Frankenstein, Zona Branca, LSD Nô e Faróis no Caos. Tem poemas e contos
traduzidos para o inglês, espanhol e alemão, publicados nos EUA, Espanha,
Argentina, México, Peru e Alemanha. Gravou os cds de poesia e música Viralatas de Córdoba e Rebelião na Zona Fantasma. Letrista de música popular,
tem parcerias gravadas por Itamar Assumpção, Edvaldo Santana, Titane, Patrícia
Amaral e Ney Matogrosso. Jornalista profissional há mais de três décadas,
trabalhou como repórter e editor em grandes jornais e revistas do país, como
Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde e Marie Claire.
Idealizador e curador da exposição Leminski: 20 Anos em Outras Esferas, sobre a obra do poeta
curitibano, no Instituto Itaú Cultural. É um dos editores da revista literária Coyote. Em 2021 com o poema CAVERNA, participou da Mostra
Cine e Vídeo de Poesia Falada, realizada pelo SESC Piracicaba, nos meses de
Abril/Maio com curadoria de Artur Gomes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário