terça-feira, 5 de outubro de 2021

A Poesia Afiada de Ademir Assunção - Risca Faca



CAVERNA



me tranquei na caverna com platão
pra enfrentar meus próprios males
não vi primata nem zapata nem dragão
ouvi o canto das sereias pelos bares
chamei pra briga o capeta de facão
senti o aço perfurando a carne mole
gritei bem alto um tremendo palavrão
chamei são jorge pra ajudar o filho pobre
daqui ninguém sai vivo nem com reza ou um milhão
um dia até o tolo acaba que descobre
perdi o medo de espelho e solidão
só levo a vida com a pele que me cobre


MONTANHAS SÃO FRIAS QUANTO A NOITE CAI


numa noite sem nome
a severa senhora de olhos escuros
toca-nos a face
com seus dedos de pelica
e vai arrancando, uma a uma,
todas as máscaras
que vestimos

e nessa hora sem hora
até o mais valente dos valentes
sente um tremor,
ainda que leve,
na mão que empunha o revólver


CHACAIS E HIENAS


a história sempre termina assim
os chacais – e também as hienas
saltam sobre o leão ferido

os chacais – e também as hienas
saltam sobre o leão ferido
para devorar sua carne – até o osso

os chacais – e também as hienas
saciam a fome atávica de séculos
e mostram os dentes pontiagudos

mostram os dentes pontiagudos
fiapos de carne entre os caninos
e riem seu riso de escárnios e ganância

e o riso de escárnio e ganância
é ouvido em toda a pradaria
toda a savana toda a cidade

as ovelhas balem nos currais os lobos
uivam nos cerrados as águias
apuram a visão no alto das árvores

o cheiro de carniça persiste por dias
vermes fermentam os restos de carne
e o couro do leão ferido se degrada

o vento crepita nos galhos secos
um silêncio – que não é paz nem trégua
se espalha pela pradaria savana cidade

a chuva não vem o sol é inclemente
a fome o escárnio a ganância persistem
e a história recomeça de novo e de novo



AUTO-RETRATO


talvez, uma noite
retorne

cansado das batalhas
e das festas

nada
nas mãos

muito pouco
nos bolsos

os olhos cheios
de imagens

os ouvidos loucos
de sons

shows dos stones
desenhos de escher

a pele tocada
por mulheres chocantes

vagabundo
cruzando estradas

ítacas
revisitadas

exausto das guerras
um dia, talvez

retorne

sem lenço
sem retoques

talhos
no rosto

cicatrizes
na pele da alma

a paisagem
se dissolvendo

velho, arqueado

o sapato
todo furado

e dois versos
na camiseta:

eis a vida
que não vendo


METAMORFOSIS

agora sou um cavalo
trotando livre pelos prados

brisa nas crinas, narinas
farejando o frescor da relva,

selva que se avoluma,
silvos de elfos, lumes

no limo liso das pedras,
riacho de água cristalina

agora sou uma égua
léguas além, batendo os cascos

no capim macio, no cicio
da tarde com mil sóis

que ardem, alastram luzes
sem nenhum alarde, sem

que se perceba, a alvura
do dia, céu diferente de ontem

agora sou um poeta
olhando a sombra que dobra

a esquina, sob o rápido
clarão da lua, antes

que a nuvem, cortina
de linho branco, a encubra

e revele o luminoso onde se lê:
minha loucura não tem cura

 

 Descrição

Volto da leitura do novo volume de poemas de Ademir Assunção com a sensação de ter sido levada em um estonteante travelling  cinematográfico. Sem cortes. Escrevendo alternadamente sob a lente de aumento precisa e sensível de uma poética das minúcias ou através do telescópio de longo alcance do registro histórico e social, o autor de Risca Faca nos descortina uma visão vertiginosa do mundo – a de um artista fortemente marcado pela contemplação sobre o tempo e a impermanência, enquanto, pelo viés da poesia, procura dar conta do nosso cotidiano apocalíptico.   

 Claudia Roquette-Pinto

Ademir Assunção é um poeta para todas as eras. Fazedor e admirador da poesia em todas as suas facetas (e falsetas, em geral cheias de humor): a música, a plasticidade, o logos. Faz com que todas convivam em consonância. Ou dissonância, que é a sonoridade mais comum da vida. Ademir olha para o mundo como se estivesse num bar, ao lado de Mallarmé e Bukowski. Suas aliterações não pretendem somente criar um simulacro sublime do que vê, mas cravar-se como um punhal no coração da vida.   

 Geraldo Carneiro


Ademir Assunção (1961) é poeta e jornalista. Publicou 14 livros de poesia, contos, romance e jornalismo, entre eles A Voz do Ventríloquo (Prêmio Jabuti 2013), Pig Brother (finalista do Prêmio Jabuti 2016), Ninguém na Praia Brava, Adorável Criatura Frankenstein, Zona Branca, LSD Nô e Faróis no Caos. Tem poemas e contos traduzidos para o inglês, espanhol e alemão, publicados nos EUA, Espanha, Argentina, México, Peru e Alemanha. Gravou os cds de poesia e música Viralatas de Córdoba Rebelião na Zona Fantasma. Letrista de música popular, tem parcerias gravadas por Itamar Assumpção, Edvaldo Santana, Titane, Patrícia Amaral e Ney Matogrosso. Jornalista profissional há mais de três décadas, trabalhou como repórter e editor em grandes jornais e revistas do país, como Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde e Marie Claire. Idealizador e curador da exposição Leminski: 20 Anos em Outras Esferas, sobre a obra do poeta curitibano, no Instituto Itaú Cultural. É um dos editores da revista literária Coyote. Em 2021 com o poema CAVERNA,  participou da Mostra Cine e Vídeo de Poesia Falada, realizada pelo SESC Piracicaba, nos meses de Abril/Maio com curadoria de Artur Gomes.




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