domingo, 24 de outubro de 2021

Silvana Guimarães - Cinco poemas em situação de rua

 


Cinco  poemas em situação de rua 




boletim de ocorrência

 

levaram a carteira de couro

com a caneta aurora vermelha

os cartões de crédito os cartões

de débito todos os documentos

 

3 caroços de romã a medalha de

são jorge um trevo de 4 folhas

meu retrato amarelo amassado

o rosto que jamais voltarei a ter

 

uma estrelinha do pt e a folha

seca de louro que prometia

vamos nos encontrar em paris:

única herança do grande amor

 

um papel branco rasgado

com o desenho de um coração

dentro dele a letra de 5 anos

[hoje com vinte & um]:

 

te amo minha mamãe


 

no-thing-ness

 

 caminhar por ruas

que desconheço

: tropeçar no desejo

 

sentir o silêncio

solfejando a saudade:

sustenida em si

 

delirar o verso furta-cor:

um poema sem flores

peixes ou borboletas

 

o nada incolor:

como antes de nascer

ou depois de morrer

 

um amor através

: seu corpo grudado

no céu da minha boca

 

meus olhos ao vento

nesta tarde endiabrada

: a cidade me deserta


 

angiologia

 

 angelina e sua coleção de varizes

fora os dentes escuros suspeitos

e as gengivas que ardiam infiéis

 

na cozinha da patroa fazia bolinhos

de chuchu com vagem macarronada

pernil com tutu farofa: inesquecíveis

 

na igreja operava milagres curava cegos

mancos tortos hipertensos diabéticos

negacionista: debochava da medicina

 

foi atropelada na cristiano machado:

voltava do culto endeusada angelical

sorriso discreto calafrios de felicidade

 

subiu aos céus — enfim arrebatada —

nos braços paramédicos do samu

à velocidade maior da escuridão


 

brutalidade

 

 no canteiro central da amazonas

com afonso pena perto da praça sete

a amiga me conta que ele se casou

 

— ah o amor, essa coisa rara,

tomara que seja muito feliz, etc.,

comigo a paixão não resistiria

 

fui à lanchonete da galeria ouvidor

e comi cinco pastéis de palmito

três de carne e quatro de queijo

 

depois vivi essa solidão parabólica

sofri o silêncio distendido no seu nome

a vontade imortal de comer pastéis


 

savassi, beagá

 

 a miséria nas calçadas

ofusca o brilho do cartão-postal

 

o senhor de cabeça branca

estende o chapéu e suplica uma moeda

 

ela nega: tem pressa & preguiça

deus lhe abençoe, minha filha — ele diz

 

ela sente o coração descompassar

apressa o passo e sai mancando


 Silvana Guimarães. Escritora, nascida em Belo Horizonte/MG, onde vive. Formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais, foi pianista e especialista em transporte público. Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte e do coletivo Escritoras Suicidas. Revisou e organizou incontáveis livros de poesia alheios. Participou de várias antologias poéticas nacionais e estrangeiras. O corpo inútil (no prelo) é o seu primeiro livro de poesia. Provavelmente, o único.


Fulinaima MultiProjetos

contatos: portalfulinaima@gmail.com 

 (22)99815-1268 - whatsapp


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