DA CARNE
DA PALAVRA
Tanussi Cardoso, poeta
Ator, produtor, videomaker e agitador cultural, o poeta Artur Gomes tem assinatura própria. SagaraNAgensFulinaímicas, seu mais novo
livro, repleto de citações a partir do título, é a prova generosa do que
afirmo: um inventário da pulsação de sua escritura, uma das mais iluminadas,
entre os remanescentes da geração que se inicia nos anos 60-70.
Mesmo mirando certa desconstrução narrativa, o autor semeia as
raízes culturais, germinadas naquelas décadas, que desabrocharam como furacão
em nossa arte, principalmente vindas da canção popular, com sua palavra
cantada, da poesia marginal, da Tropicália, do Concretismo, do poema-postal, da
poesia visual, do cinema e, mesmo, dos quadrinhos.
Todo esse caldeirão cultural, todas essas referências e linguagens
eram (são) muito próximas: Caetano, Gil, Torquato, Glauber, Leminski, Waly,
Gullar, Hilda Hilst... E é desse quadro geracional (e bem lá atrás, Drummond,
Murilo Mendes, Bandeira, Cabral, Quintana, Mário, Oswald e Guimarães Rosa - e
principalmente -, a trilogia dos malditos: Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé, além
dos ecos do mestre beat, Allen Ginsberg), é desse manancial criativo que o
poeta consegue desarmar o que nele se encontra envolto, de forma atávica, e
reafirmar seus próprios tempo e potência, com o refinamento de sua fala.
Ao unir todo artefato onde exista possibilidade de poesia, Artur Gomes habita o lugar entre a
palavra e a imagem, ao experimentar os sentidos que lhe chegam, sugando os
afluentes existentes nas estruturas tradicionais de nossas artes, e
reescrevendo-os a seu bel-prazer, num mix de nostalgia e futuro.
“visto
uma vaca triste como a tua cara:
estrela
cão gatilho morro
a poesia
é o salto de uma vara”
De forma particular, o autor parece nos indicar algo que se
confunde com transgressão, mas, ao mesmo tempo, mantém a linha tênue da poesia
clássica, ao flertar com um romantismo de tintas fortes, e tocando, igualmente,
o surrealismo, com uma violência verbal, que cheira à flor e à brutalidade.
Cada poema possui sua própria respiração, pausa e pontuação
emocionais. Quem não gostar de sangrar e ir fundo no mais recôndito dos
prazeres é melhor não prosseguir na leitura, mas quem tiver coragem de encarar
a vida de frente e se deliciar com versos saborosos e extremamente imagéticos,
entre no mundo do poeta, de imediato, e sentirá a alegria de descobrir uma
poesia a que não se pode ficar indiferente.
“a língua
escava entre os dentes
a palavra
nova
fulinaimânica/sagarínica
algumas
vezes muito prosa
outras
vezes muito cínica”
Ainda que não pretenda novas experiências formais, o autor
consegue alcançar perspectivas ousadas e radicais, em vários enquadramentos
linguísticos, sempre disponíveis para o espanto, já que quando falamos de
poesia, tocamos em lados inexatos, onde qualquer inversão de objetividade, e da
própria realidade, é sempre bem-vinda. Sua poesia tem muito da desordem, da
inobservância de regras, do não sentido, e apresenta um discurso contrário a
certo pensamento lógico, fazendo surgir nas páginas do livro, algumas impurezas
saudáveis.
“te
procurei na Ipiranga
não te
encontrei na Tiradentes
nas tuas
tralhas tuas trilhas
nos
trilhos tortos do Brás
fotografei
os destroços
na íris
do satanás”
SagaraNAgensFulinaímicas nos
apresenta uma peça de tom quase operístico e, paradoxalmente, para um só
personagem: o Amor. E o desenho poético dessa montagem pressupõe uma grande
carga lírica, alegórica e, tantas vezes, dramática, ao retratar o som universal
da Paixão, perseguindo a imagem ideal dos limites do desejo. Seus versos são
movidos por esse sentimento dionisíaco, e por tudo que é excesso, por tudo que
é muito, como na música de Caetano.
“te amo
e amor
não tem nome
pele ou
sobrenome
não
adianta chamar
que ele
não vem quando se quer
porque
tem seus próprios códigos
e
segredos”
E indaga e responde:
“até
quando esperaria?
até que
alguém percebesse
que mesmo
matando o amor
o amor
não morreria”
Em seu texto, há uma espécie de dança frenética, onde
interagem os quatro elementos do Universo – Terra, Água, Fogo e Ar – numa
feitiçaria cósmica em contínuo transe mediúnico. Poesia que é seta certeira no
coração dos caretas e dos conformados, ao apontar para as possíveis descobertas
inesperadas da linguagem, inebriada pela vida, pelo cantar
amoroso, pelo encontro dos corpos.
“e para
espanto dos decentes
te levo
ao ato consagrado
se te
despir for só pecado
é só
pecar que me interessa”
Dono de uma sonoridade vocabular repleta de aliterações e
assonâncias, que remetem à intensa oralidade e à pulsão musical, refletindo no
leitor o desejo de ler os poemas em voz alta, o poeta brinca com as palavras,
cria neologismos, utiliza-se de colagens originais, e soma ao seu vasto arsenal
de recursos, o uso das antíteses, dos paradoxos, das metonímias, das metáforas,
dos pleonasmos e, principalmente, das hipérboles, através de poemas de
impactante beleza. Esse jogo vocabular, que a tudo harmoniza, transforma a
dinâmica do verso, dá agilidade, tensão e ritmo envolventes a uma poesia
elétrica e eletrizante. Um bloco de tesão carnavalizante e tropical - atrás de Artur Gomes só não vai quem não o leu.
“quero
dizer que ainda é cedo
ainda
tenho um samba/enredo
tudo em
nós é carnaval”
De forma lúdica e irônica, reconstrói, ou reverte, as
intenções de Guimarães Rosa, quando Sagarana se mistura à ideia de paisagens e
ao sentido de sacanagens; e às de Mário de Andrade - onde Macunaíma reparte seu
teor catártico em poéticas folias, ou em fulias de imagens, ou seja, em
fulinaímicas poesias, banhadas de caos e humor.
“é língua
suja e grossa
visceral
ilesa
pra
lamber tudo que possa
vomitar
na mesa
e me
livrar da míngua
desta
língua portuguesa”
Ao seguir de perto o conceito metafórico do processo crítico e
cultural da Antropofagia, o artista ratifica seus valores, com sua língua
literária, e reafirma o ato de não se deixar curvar diante de certa poesia
catequisada pela mesmice e pelo lugar comum, distanciando-se da homogeneidade
de certo academicismo impotente e de certos parâmetros poéticos com que já nos
acostumamos.
De acordo com o próprio autor, revelado em uma entrevista, SagaraNAgensFulinaímicas é um pedido de
bênção a seus Mestres, imbuído do teor catártico que sua poesia contém, como o
fragmento do poema que abre o livro:
“guima
meu mestre guima
em mil
perdões eu vos peço
por esta
obra encarnada
na carne
cabra da peste”
E afirma:
“só curto
a palavra viva
odeio
essa língua morta
poema que
presta é linguagem
pratico a
SagaraNAgem
no centro
da rua torta”
No livro, os poemas se interpenetram, linguisticamente,
libidinosos, doces e cruéis, vampiros de imagens ferrenhas, num aparente jogo
de representação, onde o rosto do poeta se mostra e se esconde, de acordo com a
mutação e o reflexo de seus espelhos interiores. Seus textos ora afirmam, ora
desmentem o já dito, a nos lembrar um de seus ídolos, Raul Seixas, e a sua
metamorfose ambulante. Sentimentos contraditórios, como se o autor quisesse,
propositalmente, escorregar segredos pelos nossos olhos, ambiguamente, rindo de
nós, a nos instigar: “Desnudem a minha
esfinge!”
“eu não
sou flor que se cheire
nem mofo
de língua morta”
Na verdade, sua poesia apresenta vários (re) cortes, várias
direções, vários abismos e formas de olhar a vida e o mundo. Como se o
verdadeiro Artur se dissolvesse em outros, a cada poema, e essa dissipação o
transformasse em alguém improvável, impalpável. Errante. Artur Gomes, ele mesmo, são muitos. E todos nós. Afinal, “o poeta é um fingidor”, ou não?
“a carne
que me cobre é fraca
a língua
que me fala é faca
o olho
que me olha vaca
alfa me
querendo beta
juro que
não sou poeta”
Tantas vezes escatológico e sensual, numa performance textual
que parece uma metralhadora giratória, o seu imaginário poético explode em
tatuagens, navalhas, sangue, cicatrizes, punhais, facas, cuspe, pus, línguas,
dedos, dentes, unhas, seios, paus, porra, carne, flores e lençóis, como um
paraíso construído num inferno, e toca o nosso céu interior, nas ondas de um
mar verde escondido em nosso peito. Na nossa melhor alma.
Sem falsos pudores, o autor procura, em seu liquidificador de
palavras, misturar o erótico, o profano e o sagrado, com cortes de cinismo e
grande dose de humana solidariedade. Equilibrista na corda-bamba, sem rede de
proteção, entre razão e delírio, instiga dualidades com seus versos de alta
voltagem poética. Com linguagem rebuscada, seu trabalho ultrapassa os limites
das páginas do livro, e reverbera como tambor, mesmo após o término de sua
leitura.
“a carne
da palavra
: POESIA
l a v r a
q u e s o l e t r o
todo Dia”
A poesia de cunho social é, igualmente, referência obrigatória
em seu trabalho, desde o início de sua carreira literária, marcadamente, em Jesus Cristo Cortador de Cana, de 1979, mas, principalmente, no memorável e
premiado O Boi Pintadinho, de 1980.
Esses poemas político-sociais, junto ao tema amoroso, também encontramos em
outras obras importantes do poeta, como Suor
& Cio, de 1985, Couro Cru &
Carne Viva, de 1987 e 20 Poemas Com Gosto de JardiNÓpolis& Uma Canção
com Sabor de Campos, de 1990, e se inserem em todos os seus livros
posteriores, que culminam agora em SagaraNAgensFulinaímicas.
Em suas viagens imemoriais, o poeta mistura São Paulo,
Copacabana, Búzios, calçadas, origem, chão, mares, cactos, sertão, onde tudo
sangra de maneira violentamente bela e sem volta. Só a língua a ser
reconstruída em poesia.
“ando por
são Paulo meio Araraquara
a pele
índia do meu corpo
concha de
sangue em tua veia
sangrada
ao sol na carne clara”
Artur
Gomes sabe que ao escritor cabe proporcionar beleza e prazer.
Entende que a poesia existe para expressar a condição humana, tocar o coração e
a emoção do outro, e dar oportunidade para que seu interlocutor tenha chances
de conhecer-se mais e melhor. Eque só há um meio de o poeta conseguir seu
intento: cuidar e aperfeiçoar a linguagem. Sempre coerente, Artur Gomes sublinha o essencial de seu
pensamento, ratificando em seu trabalho que as duas maiores palavras da nossa
língua são amor e liberdade.
“a coisa
que me habita é pólvora
dinamite
em ponto de explosão
o país em
que habito é nunca
me verás
rendido a normas
ou leis
que me impeçam a fala”
SagaraNAgensFulinaímicas veio
confirmar o que os leitores do poeta já sabiam: Artur Gomes é um artista instigante, um cantador que desafia
rótulos. No seu fazer poético, há um desfocar proposital da realidade, onírico
e cinematográfico, que mergulha em constantes vulcões, em permanente ebulição –
um texto em contínuo movimento.
Sua poesia metalinguística, plástica, furiosa, delicada, passional,
corporal, sexual, desbocada, invasiva, libertária, corrosiva, visceral, abusada,
dissonante, épica é, antes de tudo, a poesia do livre desejo e do desejo livre.
Nela, não há espaço para o silêncio: é berro, uivo, canto e dor. Pulsão.
Textura de vida. Uma poesia que arde (em) seu rio de palavras.
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