Tempos Inexatos
escorrem vão entre os dedos
minhas horas de descuido
dou-me corda como impulso
em elogio ao relógio
acerto ilógicos prazos
vencimentos validades
a máquina presa ao pulso
não me permite o atraso
ontem hoje amanhã
quando quando me expirar?
vida regida por Cronos
relativizo o autômato
todo horário é contrário
todo tempo, contratempo
busco viver o momento
na engrenagem dos meus dias
Tribal
se nossos índios são índios
aqueles índios também são
não sei se índios só são índios
ou se índios também são árvores
ou se os morros são índios ou lagos
ou se os índios são chuvas ou sóis
ou se os rios não são índios
como são os bichos e os seringais
ou o fogo e os vendavais
sei que são mamelucos, caboclos,
mulatos e cafuzos – por que não?
índios são pedras de outras pedras
se nossos índios também são pedras
índios são terras de nossa terra
Jorge Ventura in Faca de Ponta, Fogo de Palha (Oficina Editores, 2012).
Origami
quando a ideia me perturba
entre o barulho e o silêncio
tudo é um só contrassenso
que inocência ou culpa
virá em vão me julgar
neste papel tumular?
reparto em dobras meus textos
discursos e manuscritos
(de abismos e de delírios)
nas páginas, palimpsestos
reparto também a folha
metade doutra metade
do que é múltiplo e arte
e antes que a ideia se recolha
e a angústia vire bolha
e o papel retorne seda
nas dobraduras das letras
o verso assim se desdobra
pois toda palavra é obra
pra muito além do poema
Ponto de Cruz
Choro
a erosão
do tempo
traçado
em ravinas
sei do que é deserto:
o caminho do homem
a vida é trama
dedicada à seca
entrelaçam-se
desmandos
desenganos
desenredos
no horizonte
de esperas
o sertão bordado
de mandacarus
escrevo meu rumo
no ponto de cruz
De Água para Vinho
Chego a saciar a sede ao beber tua noite.
Vinho tinto e rascante nas lentes da taça!
De alegria e carne exponho a boca cheia.
Todos os teus desejos são minha graça.
Mordo as horas, mastigo o tempo.
Descubro em cada gole o teu segredo.
Não querias um Deus junto a ti para brindar?
Alguém, de entre mitos, escolhido a dedo?
Tim-tim! Ouço o tilintar de nossos corpos,
volúpias derramadas (tua e minha).
A língua saboreia livre sem tomar fôlego.
Os mágicos prazeres vêm das vinhas.
Uma nova safra nasce neste instante.
Velho moinho em que fui trigo e ora pão,
te dou sustento à luz do deslumbramento.
Apresento o milagre da transformação!
Faço da farra e do amor o meu banquete.
Celebro a vida à mesa farta (uvas e nacos).
Nada mais sagrado, nada mais profano:
o Zé-ninguém de ontem é hoje o teu Baco!
Jorge Ventura
Jorge Ventura é escritor, roteirista, editor, ator, jornalista e publicitário. Tem 10 livros publicados e participação em dezenas de coletâneas nacionais
e estrangeiras. É presidente da APPERJ (Associação Profissional de Poetas
no Estado do Rio de Janeiro), titular do Pen Clube do Brasil, membro diretor da
UBE – RJ (União Brasileira de Escritores) e um dos integrantes do grupo Poesia Simplesmente. Recebeu
diversos prêmios, em nível nacional e internacional, como autor e intérprete.
Nenhum comentário:
Postar um comentário