terça-feira, 1 de março de 2022

Coletânea Poetas Vivos - Jorge Ventura

 


Tempos Inexatos

 

escorrem vão entre os dedos

minhas horas de descuido

dou-me corda como impulso

 em elogio ao relógio

 

acerto ilógicos prazos

 vencimentos validades

 

a máquina presa ao pulso

 não me permite o atraso

 

ontem hoje amanhã

 quando quando me expirar?

 

vida regida por Cronos

relativizo o autômato

 

 todo horário é contrário

todo tempo, contratempo

 

busco viver o momento

na engrenagem dos meus dias

 

Tribal

 se nossos índios são índios

aqueles índios também são

não sei se índios só são índios

ou se índios também são árvores

 

ou se os morros são índios ou lagos

ou se os índios são chuvas ou sóis

ou se os rios não são índios

como são os bichos e os seringais

 

ou o fogo e os vendavais

sei que são mamelucos, caboclos,

mulatos e cafuzos – por que não?

índios são pedras de outras pedras

 se nossos índios também são pedras

índios são terras de nossa terra

 Jorge Ventura in Faca de Ponta, Fogo de Palha (Oficina Editores, 2012).

 

Origami

 

quando a ideia me perturba

 entre o barulho e o silêncio

tudo é um só contrassenso

 que inocência ou culpa

 virá em vão me julgar

neste papel tumular?

 reparto em dobras meus textos

discursos e manuscritos

(de abismos e de delírios)

 nas páginas, palimpsestos

 

reparto também a folha

metade doutra metade

do que é múltiplo e arte

e antes que a ideia se recolha

e a angústia vire bolha

 e o papel retorne seda

nas dobraduras das letras

 o verso assim se desdobra

pois toda palavra é obra

pra muito além do poema

 

Ponto de Cruz

 

Choro

 a erosão

do tempo

 traçado

em ravinas

 

 sei do que é deserto:

 o caminho do homem

 

a vida é trama

 dedicada à seca

 

entrelaçam-se

desmandos

desenganos

desenredos

 

no horizonte

de esperas

 o sertão bordado

de mandacarus

 

escrevo meu rumo

 no ponto de cruz

 

De Água para Vinho

 

 Chego a saciar a sede ao beber tua noite.

 Vinho tinto e rascante nas lentes da taça!

 De alegria e carne exponho a boca cheia.

 Todos os teus desejos são minha graça.

 

Mordo as horas, mastigo o tempo.

Descubro em cada gole o teu segredo.

Não querias um Deus junto a ti para brindar?

 Alguém, de entre mitos, escolhido a dedo?

 

Tim-tim! Ouço o tilintar de nossos corpos,

 volúpias derramadas (tua e minha).

A língua saboreia livre sem tomar fôlego.

Os mágicos prazeres vêm das vinhas.

 

Uma nova safra nasce neste instante.

Velho moinho em que fui trigo e ora pão,

te dou sustento à luz do deslumbramento.

Apresento o milagre da transformação!

 

Faço da farra e do amor o meu banquete.

Celebro a vida à mesa farta (uvas e nacos).

Nada mais sagrado, nada mais profano:

o Zé-ninguém de ontem é hoje o teu Baco!

 

Jorge Ventura

Jorge Ventura é escritor, roteirista, editor, ator, jornalista e publicitário. Tem 10 livros publicados e participação em dezenas de coletâneas nacionais e estrangeiras. É presidente da APPERJ (Associação Profissional de Poetas no Estado do Rio de Janeiro), titular do Pen Clube do Brasil, membro diretor da UBE – RJ (União Brasileira de Escritores) e um dos integrantes do grupo Poesia Simplesmente. Recebeu diversos prêmios, em nível nacional e internacional, como autor e intérprete.




Pátria A(r)mada

www.arturgumesfulinaima.blogspot.com

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