sábado, 19 de março de 2022

Coletânea Poetas Vivos - Paulo Dantas



primeiro de maio

 

 você já agradeceu

por cortar o dedo picando cebola

e sentiu como arde muito mais

 

em contato co’a água sanitária

que usa para lavar

o banheiro

 

e como torna a sangrar quando esfrega

as roupas no tanque

e como torna a doer quando lava

 

xícaras, panelas, talheres, copos e pratos e

em seguida

começa tudo de novo?

 

chega uma hora em que o corte

esmorece

entrega os pontos

 

se dá por vencido e

exaurido

resolve cicatrizar

 

a dureza do trabalho

invisível

é demais para ele

 

as mãos insubordinadas

sorriem

como se tivessem todos os dentes na boca

 

nessas mãos

mora a boniteza

de tum-tum-tuns de zabumba e fraseados de pífano

 

nessas mãos

mora a determinação

de vulcões, terremotos e dobramentos modernos

 

nessas mãos

mora o enfrentamento

de frear processos produtivos e cavucar terra seca

 

nessas mãos

mora a mais aguerrida possibilidade

de parir-se

                     poesia


 

ode à civilização

 

 liturgia

letargia

: um bafo de morte aportou no correr

do nosso tempo

 

a selvageria

expurgada de nossos corpos

prostrou-se ante o sobejo de fé

que tomamos por empréstimo

 

postos a terços tresvariamos

súplicas

socados em gratidões eternas

à santa patriarcal trindade

 

são quartas e quartas-feiras

evocando a tisna

profana

do fundo de nossas panelas

 

com quantas

com quais infâncias

balançando seus dentes de leite

sustentamos o consumo?

 

à sua imagem

semelhança

divagamos estas carcaças

de alheias propriedades privadas

 

(coisa de sangue

é andar sempre às voltas co’o desejo

de nos tornarem

alvos)


 

panfleto

 

a cidade

agoniza

gentes

 

& jeitos

no sinal

[há de se

 

bater

o barro

aguar

 

amassar

sentir

seu gosto

 

viço-verve

por entre

os dedos

 

moldá-lo

ao grito

golpe

 

de corpo

fornalha

ascender

 

à escuta

a mouquidão

lesada

 

no passeio]

você passa

preso

 

preço

pressa

acelera

 

a vida

pela hora

da morte

 

sinfonia

de ossos

: o poema

 

que sempre

escapole

ao trato

 

das mãos

vive lá

manifesto

 

pelas ruas

reclamando

por você

 

reclamando

que você

hesita

 

treme

tropeça

quando

 

é preciso

coragem

coragem

 

       ¿escutou?


 

cotidiano

 

a partir daí

os espinhos não feriam seus pés

eram instrumentos cirúrgicos

com eles

brincava estourando calos de sangue e bolhas d’água

 

as pontas de pau

de pedra

como mágica haviam desaparecido

seus calcanhares e dedos não tinham sequer notícias

de machucões ou topadas

 

até o sol

que continuava quente sobre nossas cabeças

não importava

era somente o sol tremulando um horizonte

distante

 

como aquele par de sapatos tinha aparecido

lá por casa

não sabíamos

mesmo apertados

nunca houve um sorriso tão contente em seus dias

 

corria

solta pra cima e pra baixo que a poeira cobria

gostava de chutar pedras também

e tinha superpoderes

dizia

 

usou até não poder mais

e me abraçou

quando mãinha disse

: pega esse sapato pra tu, menino

cochichando que agora eu é que tinha superpoderes

 

quem dera tivesse seus superpoderes até hoje

 

(a gente

nunca imagina

que vá acontecer co’a gente

uma coisa dessas

 

não assim)


 

[entre canga & cangapé]

 

risquei a pemba

no terreiro da poesia

e baixou mané de bia

entre bença e saravá

e baixou mané de bia

entre bença e saravá

 

puxou um coco

por ali em meio à feira

embolando a brincadeira

no balanço do ganzá

embolando a brincadeira

no balanço do ganzá

 

seguindo o rastro

logo entraram nessa dança

seo aleixo e zé criança

que desceram para cá

seo aleixo e zé criança

que desceram para cá

 

também pousou

quando ouviu essa zoada

nosso kumba das estrada

zé limeira de tauá

nosso kumba das estrada

zé limeira de tauá

 

o povo todo

foi gingando as escassezes

pois sorrindo muitas vezes

cantou lá, lá, lá, lá,lá

pois sorrindo muitas vezes

cantou lá, lá, lá, lá,lá

 

e quem passava

só bastava ouvir o mote

que chamava nos pinote

por aqui, por acolá

que chamava nos pinote

por aqui, por acolá

 

quebrou de banda

coqueando toda prosa

una chica muy hermosa

que conosco aqui está

una chica muy hermosa

que conosco aqui está

 

pegou seo mário

nosso amigo das missões

cheia de pelintrações

se jogaram no fuá

cheia de pelintrações

se jogaram no fuá

 

bem nessa hora

[entre canga & cangapé]

quando todos demos fé

quem chegou foi dona euá

quando todos demos fé

quem chegou foi dona euá

 

trajada em fonte

disse que frente ao despeito

verso na caixa dos peito

é mesminho a patuá

verso na caixa dos peito

é mesminho a patuá

 

: por essa brecha

floridinha de repente

no caminho à nossa frente

boniteza é o que mais há

no caminho à nossa frente

boniteza é o que mais há

 

por essa brecha

miudinha & sertaneja

fiquem firmes na peleja

nunca deixem de lutar

fiquem firmes na peleja

nunca deixem de lutar

 

Paulo Dantas

sertanejo de santa luzia/pb, vive no abc paulista, onde pratica o ofício da poesia popular.



                                             O Poeta Enquanto Coisa

                          www.secretasjuras.blogspot.com

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