canção de um realejo solitário
para Artur Fulinaíma
“ainda tenho o teu perfume
pela casa
ainda tem você na sala
porque meu o coração dispara
quando sinto teu cheiro
dentro de um livro
dentro da noite veloz”
meu coração dispara
quando abro a porta
e não te vejo
na vertigem do dia
canção de um realejo solitário
quando não te beijo
eu imenso mar sozinha
como um peixe afogado em águas
de delírio e sal
Rúbia
Querubim
Obs.: versos entre aspas Adriana Calcanhoto que me acompanhou
ontem a noite inteira em minha solidão
Tenho a face torta
Por desdenhar da vida
Tenho as pernas tortas
Por desandar na vida
Tenho a visão torta
Por desvendar a vida
Tenho a alma torta
Para que caiba em mim
Deus escreveu-me torto
Por linhas incertas
Antônio Cunha
Poema
do livro Estuário de Incompletudes, que irei lançar presencialmente no dia
24/03, às 19h30, na Casa do Teatro - Grupo Armação, em Florianópolis:
https://www.youtube.com/watch?v=0exnei18uW0
Há dois anos e, quem imaginaria... a pandemia continua, sem previsão de fim...
QUASE AGORA
Depois a gente esfrega o chão
recolhe os tapetes
ergue os varais com as toalhas e os lençóis
corta a grama que já extrapolou os limites
abre as persianas e deixa chegar outro sol
depois a gente corta o fio
afia a navalha
estende o cordão entre as paredes
pendura as fotografias que sobrarem no baú
precisaremos afinar o olhar - o jeito certo de
olhar -
para não perder nenhuma palavra desviada
daqueles olhares estancados da vida
como meros ingredientes do nada
depois a gente chora
enxuga o leite derramado
diz o amor engolido a sete chaves
corre o risco de perder a hora, o trem, a viagem
depois do fim
e recolhe cada um dos abraços deixados de lado
na cama, na poltrona, na cadeira da cozinha,
sobre o armário
empilha um por um, dobrados e cobrados,
nunca dados, os beijos desejados
por ora, resta-nos a máscara
o lábio amargo
a garganta seca
luvas guardando dedos sem anéis
em mãos mil vezes lavadas em água, sabão e
desespero
por ora, já é quase agora
essa pobre senhora desconhecida
estendida no varal entre razões escusas
a vida - por um fio.
(Nic
Cardeal, 13.03.2020)
uma infestação de piolhos
deixou o continente mineiro
se coçando de raiva
ela dizia assim:
"aqui no continente
mineiro"
vovó gostava de desenhar piolhos
piolhos e homens brancos se coçando
piolhos e homens brancos
uniformizados se coçando
piolhos e homens brancos uniformizados
com armas em punho se coçando
vovó era benzedeira
vovó era curandeira
e gostava de desenhar piolhos
minha tia que era cega tinha nojo só
de imaginar
mamãe morria de rir – achava vovó
maluca
eu herdei os desenhos de vovó
eu herdei sua maluquice
e a secreta desconfiança
pelos homens brancos
pelos homens brancos e uniformizados
pelos homens brancos, uniformizados e
com armas em punho.
Lisa Alves "Piolhos" | Jardim de Pragas ( livro em construção)
minha avó materna, Maria Antônia,
1914-1992 ( arquivo pessoal)
A TAMPA DO TEMPO
cavou a vida
como a folha
quebradiça
furando o
barro
vendo-se na pedra
depois mais
fundo
buscando a terra
de dentro do buraco
que tampasse outro buraco
sem criar
novos buracos
cavou até
perder
unhas e
falanges
o carpo e o
braço
finalmente o
tronco
depois veio
a pá
e arruinou
tudo
cavou um único buraco
e tampou todos os buracos.
Jessika Iancoski
PlanaltinoPerifericoDFconfesso
DEUSEJAH
Não comungo Com os que se contentam
Com migalhas do estado e das
religiões,
Pois eles alimentam monstros.
Não comungo com os que enforcam falas
para libertar silêncios.
Não comungo com os que não admiram a
rebeldia dos rios que sobem montanhas e desaguam no céu.
Sei que meus desejos
São deuses onipotentes
Que habitam infinitos
Me protegem dentro das dobras do
tempo.
Luiz Felipe Vitelli-DFaceiro
À MORTE DE UM CANALHA
(poema escrito e publicado em 1963)
OBITUÁRIO COM HIP-URRAS´
Vamos festejá-lo
venham todos
os inocentes
os lesados
os que gritam à noite
os que sonham de dia
os que sofrem no corpo
os que alojam fantasmas
os que pisam descalços
os que blasfemam e ardem
os pobres congelados
os que amam alguém
os que nunca se esquecem
vamos festejá-lo
venham todos
o crápula morreu
acabou-se a alma negra
o ladrão
o suíno
acabou-se para sempre
hip-hurra´
que venham todos
vamos festejá-lo
e não-dizer
a morte
sempre apaga tudo
a tudo purifica
qualquer dia
a morte
não apaga nada
ficam
sempre as cicatrizes
hip-hurra´
morreu o cretino
vamos festejá-lo
e não-chorar por vício
que chorem seus iguais
e que engulam suas lágrimas
acabou-se o monstro prócer
acabou-se para sempre
vamos festejá-lo
a não-ficarmos tíbios
a não-acreditar que este
é um morto qualquer
vamos festejá-lo
e não-ficarmos frouxos
e não-esquecer que este
é um morto de merda
Mario Benedetti
fonte: time line no face de Edelson Nagues
que todas as ruas tenham e repitam
seu nome Marielle
que todas as ruas chamem, gritem e
lembrem seu nome Marielle
pois as chagas continuam a doer
as feridas continuam a sangrar
as perguntas continuam sem resposta
mas nós sabemos a resposta, Marielle,
mas ela continua a morrer a cada dia
continuam tentando matá-la todo dia
mas ela resiste, nós resistimos, ao
fulgor
da tentativa de esquecimento
que todas as ruas sejam Marielle
todas as ruas serão Marielle
Já são.
Trago versos e cicatrizes
Das rosas de vidro de Guadalupe
Rios de cantos negros
Rios de cantos, à boca da noite
Tecendo anjos mulheres e homens de
luzesMeninos sopranos de mel
cantando à lua
Sob o céu de San Vicente
Sob o céu de San Vicente
Tenho o cheiro dos cortes das rosas
Tatuados na alma
Pétalas das melodias
candeias de estrelas cadentes
apagando as noites suaves
criando manhãs sonoras
auroras bordadas véus
Sob o céu de San Vicente
Sob o céu...
Tonho França
Dani-se morreale
se ela me pisar nos calos
me cumer o fígado
me botar de quatro
assim como cavalo
galopar meus pelos
devorar as vértebras
Dani-se
se ela me vier de unhas
me lascar os dentes
até sangrar o sexo
me enfiar a faca
apunhalar meus olhos
perfurar meus dedos
Dani-se
se o amor for bruto
até mesmo sádico
neste instante lírico
se comédia ou trágico
quero estar no ato
e Dani-se o fato
deste sangue quente
em tua boca dos infernos
deixa queimar os ossos
e explodir os nossos
poemas físicos pós modernos
Artur Gomes
O Poeta Enquanto Coisa
Editora Penalux – 2020
www.secretasjuras.blogspot.com
Pátria A(r)mada
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