sábado, 19 de março de 2022

Coletânea Poetas Vivos

 


LUTA DE CLASSES  

Wilson Coêlho

 

Os dias roem as páginas do calendário

Como se o tempo fosse uma espécie

De caminhada

Que começa na angústia

De um julgamento injusto

Por um tribunal corrupto

E asfixiado pela subjetividade

Dos que se alimentam

Da ideologia das culpas

E do ressentimento

Assim meus pés

Cumprem o itinerário

Dessa via crucis

Até o último passo

Destino da guilhotina

Não sei se o tempo me poupará

Mas vislumbro no horizonte

De que a revolução não tardará

Todas as condições estão dadas

Para a implosão desse universo mesquinho e cruel

Do capitalismo

Sei que para muitos é uma esquizofrenia

E que para outros

Uma mera diversão

Para que se sintam no mundo

Atuantes

Atenuantes

Mas quando chegar a hora

Só os verdadeiros

Terão a coragem de enfrentar o inimigo

Comprometidos em não perderem

O medo

Para não perderem a vergonha

Conscientes de um mundo suicida

E assassino

Não é hora

E não sei se um dia já foi

Para acreditarmos que as lutas identitárias

Sejam o alimento medíocre

Dos pequenos burgueses

Que se acreditam

Fazendo a sua parte

A revolução não tardará

E a própria história separará

O joio do trigo

O revolucionário do simpatizante

A diferença entre a corda

E o enforcado

Abaixo a hipocrisia do púlpito

Dos parlamentares

Fora os discursos sem ecos

Que morrem nos megafones

E que se entalam na garganta dos oradores

Ou se resumem aos desabafos

Dos que necessitam falar

Para desopilarem o fígado

Para se sentirem no mundo

Nesse exato momento

Temos milhares de negros assassinados

Mulheres estupradas

Indígenas dizimados

Ideias de liberdade trucidadas

Enquanto muitos pequenos burgueses

Se acreditam fazendo sua parte

Porque não correm nenhum risco

E estão protegidos

Pela própria burguesia

Como se a liberdade fosse uma concessão

E não um projeto de enfrentamento

A revolução não tardará

Fora dos divãs das psicologias de massas

Adaptando os explorados

Transformados em doentes

Pelos próprios mecanismos que os adoeceram

E não será veiculada pela mídia burguesa

No seu monopólio de uma voz

Autorizada e hegemônica




Hitokage no Ishi 人影の石

[as sombras do homem gordo]

Nagazaki: “Fat Man”, arremessada dos céus ao chão
– flash de luz ofuscante e ardor – imprime
máculas, miríades de contornos
em derradeiros segundos.

relíquias horripilantes – sombras humanas
da morte – carregam nos dorsos,
o eterno brilho da lua.

ao alvorecer
flores de lótus não se abrem.
silêncio dos sinos.
todos os seres percebem
que o verão perdurará.

*
by Ziul Serip


imagem: Yoshito Matsushige, exibida no Australian War Memorial. 



a poesia foi uma trégua
na memória sombria

dos vários solos
por onde pisei

perdoa-me, corpo
pelos golpes do mundo

então apenas peço:
- deixa-me doer em paz

Poema de Benette Bacellar - 2022

Laura Makabresku Art




fascina-me o delírio 

do corpo no poema

 

um profundo ardor

escrito nas terras da noite

 

algo indecifrável

ou nada provável

a febre inexplicável

 

da intimidade

antes reprimida

e palavras não ditas

 

da escandalosa

perdição carnal

 

ora obscena

ora grotesca

 

da imensa sedução

mastigada na minha boca

 

deformada desde sempre

por parte de um Deus severo

 

recolho a vergonha

esquecida aos pés da cruz

e digo:

 

- te quero

lua da minha vida

 

nem era o sol ainda

nem você o amor da minha vida

 

Poema de Benette Bacellar - 2022

Laura Makabresku Art




 O vidro e o verbo

Para o poeta José Regi

 

O poeta ganha a vida com o vidro

Se perde com o verbo

Ou vice-versa

 

Tudo é frágil: vida, verbo e vidro

Tanto faz

 

Nem tudo é transparente

Nem todo poema é janela

 

O poeta paga suas contas com o vidro

e não fica devendo no verbo

 

Todo mundo tem telhado de vidro

E vidro quebra

 

O poema já vem quebrado

A vida...

 

Armando Liguori Junior




 DESCUIDO


Não tenho jeito
sou desatenta
espalho pedaços de mim
por onde vou
depois
quando volto
tropeço em meus restos
quase caio
desequilíbrio vizinho dos pés à cabeça.
Outro dia dei de cara comigo
fazendo estrelas no vidro embaçado
eram cacos eram rastros
poeira despencando dos olhos
lágrimas desavisadas
em estado pós-traumático.
Pulsações cardíacas costuram saudades
nos passos que um dia sonharam asas.
Não tenho jeito
sou desajustada demais
quando se trata de caminhar sobre o amor.

(Nic Cardeal, em 19.03.2019)

 




MEDUSA

 

Dias cinzas, dias frios
que espalham sobre as folhas
a fuligem,
não façam desse canto
mero desencanto na luta
do homem contra a Górgona
das engrenagens contínua;
mas brado de guerra
retumbante, retomando
os territórios do sentido.

Pois do alto de arranha-céus
eu vi tuas serpentes
se espalhando pelo solo
– Anacondas sufocando
os pesares nas carruagens
do tempo comprimido entre
as agendas.
Vi homens e mulheres
tomando pílulas de alívio
e felicidade, irmãos
rotos de esperança
buscando restos no lixo
e fazendo companhia aos
ratos, vi cérberos
adestrados latindo contra
inocentes, templos
erguidos ao Céu como
monumentos do caos e em
todos os cantos era
possível ver suas marcas.

As ruas tomadas de
estátuas inertes
caminhando – homens de pedra
no cachimbo se perguntam
na angústia o que sobra
dessa dor – comprovam
que a besta-fera domina
esta paragem
& destrói & destroça
tudo aquilo que encosta
– torna concreto
o desencanto secreto
do ser.

Sigo no contrafluxo
do tempo que sufoca os irmãos
iludidos pela sua imagem
no espelho;
me perco em seus recantos:
Anhangabaú, Carandiru, Tietê
Tucuruvi, Butantã
– nheengatu esquecido nas esquinas.
Eu sou o genocídio indígena,
sou Sepé Tiaraju & Borba Gato
& tenho nas mãos o sangue dos meus antepassados.

Tupiniquim de Araque
não confundo mais o cheiro da selva
com o óxido carbônico de tuas serpentes:
tu, monstro ctônico, cavalgada e cavalgante
sobre nós se constrói
pedra sobre gente sobre pedra
sobre gente sobre gente sobre
pedra sobre pedra sobre gente
soterrando os sentidos.

Por sobre os prédios vejo
Éris dançando ao alvorecer
seu balé diário;
eternos retornos apertados
nas lotações, vias & subterrâneos
do teu Hades;
sextas histéricas na volúpia da busca
vazia, repleta de hiatos buscando
no gozo dionisíaco
a argamassa que preencha;
fins de semana, desespero
do sossego que antevê uma
segunda depressiva
para Sísifo;
pequenas tragédias diárias
traçam retratos de Pompeia.

Quem entra e corrói
no cerne das horas
o fundo do humano?
Quem manda e a
mando de quem
que se mata
de frio de fome
de bala
qualquer irmão?
Por quem
dobram os Sinos
da Sé?

111 chacinas diárias
21 milhões de seres empedernidos
457 telefonemas não atendidos por segundo
232 estupros registrados por mês só na capital
1 trilhão de saudades
12 crises de choro por dia
7 bilhões de angústias
e em cada pessoa
transformada em estatística
eu sinto a sua presença.

O cheiro se alastra
pelo templo que é o corpo
e é o mundo também e logo
ouço o tremor no chão
com o peso dos seus temores
monstro à espreita
teu fino exército frio
engravatado
tecendo as mordaças,
vidas desperdiçadas
na miséria ou no luxo;
mas se Perseu sou eu
com que espada é que luto?
tenho apenas minha pena
de ser torto e ter devir;
era pra ter escudo
mas nos deram espelhos
eis que encaro seu reflexo
e vejo a face da besta:
era eu que ali estava
parado atrás de mim.

Cada fera tem seus mistérios
e a ti não deveria olhar
por não saber o que veria
e já que não te enxergo
me guio pelas sombras
e pelos ecos do teu ser;
não se sabe se é sina
ou ilusão a simetria entre
o homem e a besta,
mas quando o perigo
se aproxima não hesito
e arranco a cabeça
da Górgona enquanto
caio morto no chão.

E tudo que era você
e aquilo que te cercava,
suas raízes podres que daqui
se espalhavam lentamente
definham e desmancham
demolem cada alicerce
de tua torta estrutura.
E a chuva que desaba dos céus
alaga tuas ruas e esquinas
submersa a cidade desafoga
e das cinzas dos teus dias
surgem flores de Afrodite
que saúdam o novo tempo
mesmo no cheiro de podre
pois é da morte que surge
vida nova em teu solo.

 

Pedro Tostes

Do livro Na Casamata de Si

Editora Patuá – 2018

Fonte: https://www.poesiaprimata.com




 Rizoma

 

vestígios de pegadas nas areias
restos d’ossos roídos e d’espinhas
António Barahona

 

a infância e a memória
da infância, submersa
na líquida travessia

vez por outra
o atlântico deposita
ossos datados
nas terras do exílio

(a menina antiga
recebe os sinais
códigos esquecidos
legendas para o lembrar
– revivências)

a memória da infância
é a memória possível
(e só a memória cabe recriar)


Das Mortes

 

da primeira vez que te vi morrer
, a lembrança do horror:
teu corpo (ainda) morno e nu
na pedra fria
e
a marca da dor
num rosto que já não era o teu

da segunda vez que te vi morrer
, o torpor das exéquias:
pesadelo da tarde sem ar
sensação de estrangulamento

da terceira vez que te vi morrer
, o choque e o estranhamento:
teu nome citado no templo
na oração aos defuntos

da última vez que te vi morrer
, a dor fina e lancinante:
o descarte dos teus pertences
a certeza do nunca mais
nunca…
(a morte também

 

Dalila Teles Veras

Fonte: https://revistaacrobata.com.br

 


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