LUTA DE CLASSES
Wilson Coêlho
Os dias roem as páginas do calendário
Como se o tempo fosse uma espécie
De caminhada
Que começa na angústia
De um julgamento injusto
Por um tribunal corrupto
E asfixiado pela subjetividade
Dos que se alimentam
Da ideologia das culpas
E do ressentimento
Assim meus pés
Cumprem o itinerário
Dessa via crucis
Até o último passo
Destino da guilhotina
Não sei se o tempo me poupará
Mas vislumbro no horizonte
De que a revolução não tardará
Todas as condições estão dadas
Para a implosão desse universo
mesquinho e cruel
Do capitalismo
Sei que para muitos é uma
esquizofrenia
E que para outros
Uma mera diversão
Para que se sintam no mundo
Atuantes
Atenuantes
Mas quando chegar a hora
Só os verdadeiros
Terão a coragem de enfrentar o
inimigo
Comprometidos em não perderem
O medo
Para não perderem a vergonha
Conscientes de um mundo suicida
E assassino
Não é hora
E não sei se um dia já foi
Para acreditarmos que as lutas
identitárias
Sejam o alimento medíocre
Dos pequenos burgueses
Que se acreditam
Fazendo a sua parte
A revolução não tardará
E a própria história separará
O joio do trigo
O revolucionário do simpatizante
A diferença entre a corda
E o enforcado
Abaixo a hipocrisia do púlpito
Dos parlamentares
Fora os discursos sem ecos
Que morrem nos megafones
E que se entalam na garganta dos
oradores
Ou se resumem aos desabafos
Dos que necessitam falar
Para desopilarem o fígado
Para se sentirem no mundo
Nesse exato momento
Temos milhares de negros assassinados
Mulheres estupradas
Indígenas dizimados
Ideias de liberdade trucidadas
Enquanto muitos pequenos burgueses
Se acreditam fazendo sua parte
Porque não correm nenhum risco
E estão protegidos
Pela própria burguesia
Como se a liberdade fosse uma
concessão
E não um projeto de enfrentamento
A revolução não tardará
Fora dos divãs das psicologias de
massas
Adaptando os explorados
Transformados em doentes
Pelos próprios mecanismos que os
adoeceram
E não será veiculada pela mídia
burguesa
No seu monopólio de uma voz
Autorizada e hegemônica
Hitokage
no Ishi 人影の石
[as sombras do homem gordo]
Nagazaki: “Fat Man”, arremessada dos céus ao chão
– flash de luz ofuscante e ardor – imprime
máculas, miríades de contornos
em derradeiros segundos.
relíquias horripilantes – sombras humanas
da morte – carregam nos dorsos,
o eterno brilho da lua.
ao alvorecer
flores de lótus não se abrem.
silêncio dos sinos.
todos os seres percebem
que o verão perdurará.
*
by Ziul Serip
imagem: Yoshito Matsushige, exibida no Australian
War Memorial.
a poesia foi uma trégua
na memória sombria
dos vários solos
por onde pisei
perdoa-me, corpo
pelos golpes do mundo
então apenas peço:
- deixa-me doer em paz
Poema de Benette
Bacellar - 2022
Laura Makabresku Art
fascina-me o delírio
do corpo no poema
um profundo ardor
escrito nas terras da noite
algo indecifrável
ou nada provável
a febre inexplicável
da intimidade
antes reprimida
e palavras não ditas
da escandalosa
perdição carnal
ora obscena
ora grotesca
da imensa sedução
mastigada na minha boca
deformada desde sempre
por parte de um Deus severo
recolho a vergonha
esquecida aos pés da cruz
e digo:
- te quero
lua da minha vida
nem era o sol ainda
nem você o amor da minha vida
Poema de Benette Bacellar - 2022
Laura Makabresku Art
Para o poeta José Regi
O poeta ganha a vida com o vidro
Se perde com o verbo
Ou vice-versa
Tudo é frágil: vida, verbo e vidro
Tanto faz
Nem tudo é transparente
Nem todo poema é janela
O poeta paga suas contas com o vidro
e não fica devendo no verbo
Todo mundo tem telhado de vidro
E vidro quebra
O poema já vem quebrado
A vida...
Armando Liguori Junior
MEDUSA
Dias cinzas, dias frios
que espalham sobre as folhas
a fuligem,
não façam desse canto
mero desencanto na luta
do homem contra a Górgona
das engrenagens contínua;
mas brado de guerra
retumbante, retomando
os territórios do sentido.
Pois do alto de arranha-céus
eu vi tuas serpentes
se espalhando pelo solo
– Anacondas sufocando
os pesares nas carruagens
do tempo comprimido entre
as agendas.
Vi homens e mulheres
tomando pílulas de alívio
e felicidade, irmãos
rotos de esperança
buscando restos no lixo
e fazendo companhia aos
ratos, vi cérberos
adestrados latindo contra
inocentes, templos
erguidos ao Céu como
monumentos do caos e em
todos os cantos era
possível ver suas marcas.
As ruas tomadas de
estátuas inertes
caminhando – homens de pedra
no cachimbo se perguntam
na angústia o que sobra
dessa dor – comprovam
que a besta-fera domina
esta paragem
& destrói & destroça
tudo aquilo que encosta
– torna concreto
o desencanto secreto
do ser.
Sigo no contrafluxo
do tempo que sufoca os irmãos
iludidos pela sua imagem
no espelho;
me perco em seus recantos:
Anhangabaú, Carandiru, Tietê
Tucuruvi, Butantã
– nheengatu esquecido nas esquinas.
Eu sou o genocídio indígena,
sou Sepé Tiaraju & Borba Gato
& tenho nas mãos o sangue dos meus antepassados.
Tupiniquim de Araque
não confundo mais o cheiro da selva
com o óxido carbônico de tuas serpentes:
tu, monstro ctônico, cavalgada e cavalgante
sobre nós se constrói
pedra sobre gente sobre pedra
sobre gente sobre gente sobre
pedra sobre pedra sobre gente
soterrando os sentidos.
Por sobre os prédios vejo
Éris dançando ao alvorecer
seu balé diário;
eternos retornos apertados
nas lotações, vias & subterrâneos
do teu Hades;
sextas histéricas na volúpia da busca
vazia, repleta de hiatos buscando
no gozo dionisíaco
a argamassa que preencha;
fins de semana, desespero
do sossego que antevê uma
segunda depressiva
para Sísifo;
pequenas tragédias diárias
traçam retratos de Pompeia.
Quem entra e corrói
no cerne das horas
o fundo do humano?
Quem manda e a
mando de quem
que se mata
de frio de fome
de bala
qualquer irmão?
Por quem
dobram os Sinos
da Sé?
111 chacinas diárias
21 milhões de seres empedernidos
457 telefonemas não atendidos por segundo
232 estupros registrados por mês só na capital
1 trilhão de saudades
12 crises de choro por dia
7 bilhões de angústias
e em cada pessoa
transformada em estatística
eu sinto a sua presença.
O cheiro se alastra
pelo templo que é o corpo
e é o mundo também e logo
ouço o tremor no chão
com o peso dos seus temores
monstro à espreita
teu fino exército frio
engravatado
tecendo as mordaças,
vidas desperdiçadas
na miséria ou no luxo;
mas se Perseu sou eu
com que espada é que luto?
tenho apenas minha pena
de ser torto e ter devir;
era pra ter escudo
mas nos deram espelhos
eis que encaro seu reflexo
e vejo a face da besta:
era eu que ali estava
parado atrás de mim.
Cada fera tem seus mistérios
e a ti não deveria olhar
por não saber o que veria
e já que não te enxergo
me guio pelas sombras
e pelos ecos do teu ser;
não se sabe se é sina
ou ilusão a simetria entre
o homem e a besta,
mas quando o perigo
se aproxima não hesito
e arranco a cabeça
da Górgona enquanto
caio morto no chão.
E tudo que era você
e aquilo que te cercava,
suas raízes podres que daqui
se espalhavam lentamente
definham e desmancham
demolem cada alicerce
de tua torta estrutura.
E a chuva que desaba dos céus
alaga tuas ruas e esquinas
submersa a cidade desafoga
e das cinzas dos teus dias
surgem flores de Afrodite
que saúdam o novo tempo
mesmo no cheiro de podre
pois é da morte que surge
vida nova em teu solo.
Pedro Tostes
Do livro Na Casamata de Si
Editora Patuá – 2018
Fonte: https://www.poesiaprimata.com
vestígios de pegadas nas areias
restos d’ossos roídos e d’espinhas
António Barahona
a infância e a memória
da infância, submersa
na líquida travessia
vez por outra
o atlântico deposita
ossos datados
nas terras do exílio
(a menina antiga
recebe os sinais
códigos esquecidos
legendas para o lembrar
– revivências)
a memória da infância
é a memória possível
(e só a memória cabe recriar)
Das
Mortes
Dalila Teles Veras
Fonte: https://revistaacrobata.com.br
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