quinta-feira, 10 de março de 2022

Coletânea Poetas Vivos - Wélcio de Toledo

 


Bicicleta blue moon

 

uma noite blue de bruma e calor

meus pés de barro e sal levitam

levados pela bicicleta azul

carcomida de histórias e maresia

 

em noite do mar de lua pisamos no pescoço do universo

e libertamos as galáxias aprisionadas das páginas de enciclopédias

gosto de me ver como um rastro que segue outros rastros

ao mesmo tempo em que desoriento meus passos no balé kamikaze das ondas

 

o som do vento estronda um vapor

sigo com meu camelo na calma clara da alma da madrugada

deserto entorpecente de horizonte azul

cenário das rendas aeradas na noite inerte de alguma fuga

 

areia nos olhos vermelhos que observam o céu

um convite ao passeio pela lua de espelhos

pedalando uma velha bicicleta

ao som de saudade entranhada num blues

 

Que se foda

 

que se foda

que eu veja beleza

onde talvez

ela nunca esteja.

que seja

 

que se foda!

 

que se foda

que o que há

em minha frente

seja para muitos

aquilo que os torna ausentes

 

que se foda!

 

que se foda

quem não mais acredita

e vende a peso de ouro

o sonho dos que lutaram

para provar que a busca é infinita

 

que se foda!

 

que se foda

essa pose

de “oh não me toque”

de “oh quelquechose”

e esse ar blasé

que faz de você

mais um que “se acha” no mundo

e também vai se foder

 

que se foda!

 

que se foda

que eu queira fazer um poema feliz

mesmo que a arte seja a tradução

da vida do artista que está por um triz

cansei do equilíbrio em cima da corda

quero saltar para os braços da orda

 

que se foda!

 

que se foda

que você não se mova

não saia, não viva

que a futilidade seja o seu natural

eu vivo, arrisco e corro perigo

com os meus amigos do reino animal

 

que se foda!

 

que se foda

quem nunca sente

e vive o futuro

negando o presente.

que se foda

e se exploda

em síntese, sintaxe, semântica

semên e semente.

que venha mais gente.

 

que se foda!

 

que se foda

que todos se fodam

e fodam-se todos

e todos aceitem

a unidade despudorada do gozo

 

que se foda!

que se foda!

em gozo e alegria

foda-se tudo

e sobretudo

os poetas

eu quero é a poesia

 

Concreto

 

era só

o céu

o cerrado

a imensidão

a solidão

e o horizonte

 

olha, vê

enxerga o hoje

­­­o que tem à sua frente?

ainda o cerrado, a imensidão

a solidão já não é mais a única companhia

e de concreto, há o horizonte

 

Princesa

 

beijou príncipes

engoliu sapos

mergulhou fundo

no mar de lama

 

engoliu príncipes

lambeu o sapo

toda noite

peixinhos coloridos vêm mergulhar na sua cama

 

acorda sempre feliz

beijando a cara do dia

princesa brejeira da fauna

que aflora pela sua cercania

 

Como se o tempo fosse

aquele poema que eu nunca fiz

 

houve um dia

em que eu quis ser lindo e forte

como aquele poema que eu ainda não fiz

 

um tempo antes do pensar

um tempo

antes

[em suspenso]

 

como se minhas asas,

aquelas que brotavam do meu calcanhar,

me levassem a flutuar à deriva de mim mesmo

não era tão distante de hoje essa época

um cisco no olho de cronos

que o fazia andar em voltas

e nós rodopiando pelo caminho

sem jamais querer chegar

 

hoje me movo assustado

com gestos suspeitos

como quem procura uma saída desse redemoinho

abrindo portas de espelho

 

não quero mais a fortaleza

só um pouco de beleza e uma réstia de brilho no fundo do olho

como se um dia eu pudesse encontrar

os resquícios daquele poema

que eu ainda não fiz

 

 

A louca

eu sou a louca

a que finge se apaixonar por qualquer um do bar

jurando a si mesma que dessa vez encontrou aquele selvagem dos filmes de coppola

sei que isso passa como a coca cola que passa pelo ralo de uma rala ressaca

 

sento só em qualquer mesa

faço questão de desfazer a impressão de mulher culta

saio às ruas sem disposição para luta nem disputas

ensandecidas apenas minhas carótidas aquecendo o sangue que serpenteia na cabeça

tem dias que tô mesmo é afim de alguém que me pague uma bebida

ouvir histórias esdrúxulas de patéticas epopeias masculinas

pelo simples prazer de me obrigar a tomar mais um gole e esquecer

 

e voltar a me lembrar

de quem não sou, de como cheguei nesse lugar

e constatar entorpecida de fatal felicidade

que eu sou mesmo a louca

 

                                                           Wélcio de Toledo

 

 

 Wélcio de Toledo, nascido em Brasília, é professor, poeta, contista e atua em movimentos sociais e culturais da cidade. Como pesquisador se dedica à poesia marginal e identidade cultural em Brasília, no curso de doutorado em Literatura e Práticas Sociais pela UnB. Antes fez graduação em História e mestrado em Gestão e Políticas Públicas para Educação.

Fez parte da “Caravana Rolidey – Literatura na Estrada”, projeto que reuniu escritores como Erre Amaral, Manoel Herzog, Pedro Tostes, Marina Ruivo, Ademir Demarchi, entre outros, e que tem como proposta levar o debate sobre literatura contemporânea brasileira e apresentar a produção literária dos autores em diversas cidades do país.

Juntamente com Vanderlei Costa, Yonaré Barros e Cris Brites toca o Coletivo Anarcopoético, que organiza ocupações anarcopoéticas em espaços

abertos de Brasília juntamente com outros amigos poetas, com música, poesia, exposições ao ar livre, performances, transgressões e o que mais surgir de arte.

Possui poemas em diversas antologias, coletâneas e revistas literárias e tem quatro livros publicados: Poemas, Visões e Outras Viagens, 2012; SUBVERSOS, 2015; Rosa como o bico do meu peito (contos), 2017 e Tudo que não cabe no poema, 2019.

Acredita no caráter essencialmente libertário da poesia.

Mais Wélcio de Toledo – aqui https://revistaacrobata.com.br/demetrios/poesia/6-poemas-de-welcio-de-toledo/

 

Pátria A(r)mada

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