quarta-feira, 16 de março de 2022

Coletânea Poetas Vivos

 


 NASCIMENTO DO POEMA

 

É preciso que venha de longe

do vento mais antigo

ou da morte

é preciso que venha impreciso

inesperado como a rosa

ou como o riso

o poema inecessário.

 

É preciso que ferido de amor

entre pombos

ou nas mansas colinas

que o ódio afaga

ele venha

sob o látego da insônia

morto e preservado.

 

E então desperta

para o riso da forma

lúcida

tranqüila:

senhor do duplo reino

coroado

de sóis e luas

 

Dora Ferreira da Silva (1918/2006)

Do livro: As Mulheres Poetas Na Literatura Brasileira – Org. Rubens Jardim – Editora Arribaçã - 2022


 


Neste ano de 2022, em que a Alpharrabio Livraria Editora e Centro Cultural completa o seu trigésimo aniversário, surge o SarAlpha, um momento para ler poesia, cantar, tocar ou simplesmente trocar ideias. O sarau é aberto ao público e será exigido atestado de vacinação Covid19. A atividade acontecerá no terceiro sábado de cada mês, das 16 às 19 horas. Sábado, agora, dia 19, será nosso primeiro encontro. Bora?!




 No "Dia Nacional da Poesia" , aniversário de Castro Alves, o poeta abolicionista, republico o poema que fiz sobre a morte de Marielle Franco. Há quatro anos, hoje. Aliás, quem mandou matar Marielle?


plantio

o Amor era negro
e gostava de riso
colares de pérolas lhe saíam da boca
e cuspia fogo se preciso fosse

o Amor vestia-se de coragem
humano
humano amor
que habitava a esquerda
onde o coração se inclina
e o sol se deita

o amor falava sobre o próximo
e não viu de que lado vieram as rajadas
não ouviu as nove risadas
que a_tingiram de vermelho o amor

no mesmo instante
remontou os confins do mundo
um clarão à direita do horizonte
...
março se cobre de Marielles
tempo das águas
mês de semear a terra

Ivy Menon




4 anos de uma pergunta sem resposta:

QUEM MANDOU MATAR MARIELLE?

...

 

uma mulher descerá o morro

como se descesse de uma estrela

uma mulher seus olhos iluminados

suas mãos pulsando vida e luta

sob seus pés a velha serpente

[a baba as armas a covardia de sempre].

uma mulher descerá o morro

as inúmeras escadarias do morro

os muros arames que separam o morro

e pisará o chão desse país sem nome

desse país que ainda não existe

desse país que interminavelmente não há

uma mulher descerá o morro

tempestade é o vestido que ela veste

uma mulher descerá o morro

e ainda que seu sangue caia

ferida incessante no asfalto do Estácio

e ainda que anunciem sua morte

[e sim, ainda que a comemorem]

esta mulher ninguém poderá parar.

 

(Poema de Micheliny Verunschk)

Extraído da time line no face de Arnaldo Afonso



TERCEIRA AQUARELA DO BRASIL

 o brasil não é o meu país: é meu abismo. o terreiro de minhas, nossas contradicções. é meu câncer coletivo e a força luminosa da escuridão. é nosso discurso interrompido, sufocado e arrebentador. o brasil não é o meu país: é meu veneno. é a miséria que nenhum milagre ocultou. não é a esperança discreta mas concreta e escandalosa de que tudo (ainda) pode acontecer para melhor. é a dificuldade de conscientização diante de tantos séculos de escravismo colonial. o brasil não o meu país: é meu antidiscurso. são ideias e traumas dentro e fora do lugar. são corpos em tempo de fome, mesmo assim luzindo de paixão. é o ódio latindo no peito dos poderosos e seus pacotões pesadíssimos para nós. são, apesar de, todos os projetos de democracia sem adjetivos de importação ou tapeação. o brasil não é o meu país: é nossa esquizofrenia. é o medo de sempre doendo e até anestesiando. é o gozo de sempre roçando e até nos enganando. é o carnaval no futebol das religiões. é o terror de outrora ainda agora despedaçando mente e culhões. é a demora no jeitinho de esperar sem desespero. são os rasgos de genialidade no mar de tanta imbecilidade. é tudo que nos divide, nos sacaneia e nos diversiona. o brasil não é o meu país: é um videotape de horror. é cinco mil vezes favelas. é cincoenta mil terras em transe. são os boias-frias em trânsito. são os trâmites da cultura oficiosa. é o neocapitalismo de sampa. é a boca do lixo luxuriosa. é a confiança, nem tão ingênua como se propala, das classes oprimidas, reprimidas, deprimidas, proletarizadas, encarceradas, ofendidas e humilhadas. é a dependência corroendo tudo para nada. o brasil não é o meu país: é nosso buraco cada vez mais embaixo do outro buraco. é a luta dos severinos da vida contra os severianos da indústria cultural. são florestas devastadas e enchentes arrasadoras. dores anônimas de habitantes do anonimato. o índio sem apito. o negro aflito. o branco – quem sabe? – de consciência em conflito. as minorias ensaiando o grito. os maiorais passando o pito. é a rima pobre da prosa nossa de todo dia é dia d de poesia e azia e delito. o brasil não é o meu país: é nosso câncer circular cotidiano coisificado no circuito do abismo para a alegoria das calmarias.

 

JOMARD MUNIZ DE BRITTO (1937

Extraído da time line no face de Fabiano Calixto




 A Poesia de Wanda Monteiro Em Chão de Exílio

I


Não há vazio no silêncio
Dentro dele
Em sua veemente mudez
Movem-se as coisas
Perdidas de seus nomes

II


Habitar essa ilha de memória
Margear o passado
Essa terra de vida e morte
Buscar os sentidos
Partidos ao meio pelo tempo
Corrente-leito-de-espera
Recusar a morte
Do rio que já não é
Aceitar a vida
Do rio que será

III


Há tanto não vejo o riso da manhã
Ela em seu casulo
Concentra o tempo
Guarda na letargia das horas
Toda luz crescente
O vento faz silêncio
O fruto não cai
A música não toca
Todo gesto vem à proa do pensamento

Não há brevidade no vazio

IV


O humano é esse abismo mais profundo
Depois de inventar os deuses
O pecado e o perdão
Em sua cotidiana autofagia
Devora toda a vida
Que lhe circunda e habita

V


Perdi o fio das horas
Tenho-as delineadas
Em datas perdidas
Nas dobras do tempo
Lanço-me ao passado
Num traçado de inexata rota
Levo apenas os sentidos
Para o cultivo de imagens imperecíveis

VI


Erigir do tempo
Pretérita imagem
Quedar-se em silêncio
De surda ausência
Velar no céu da boca
Estrelas mortas de negar auroras

VII


O salto para outra margem
Chão insular
Ancho de memória
No intento de ser livre
Habitar esse chão
Decifrar sua topografia

VIII


No agora e sobre o agora
Eu ainda sinto-me num centro de lutas
Cotidianamente
Embora eu deseje empunhar a faca
E afiar seu gume
Tudo o que eu tenho é o corte certeiro das palavras
Diante das mortes de cada dia

 

 Wanda Monteiro, escritora, poeta, uma amazônida nascida à margem esquerda do rio Amazonas, em Alenquer, Pará, Brasil. Obras publicadas: O beijo da chuva (2008), Anverso (2011), Duas mulheres entardecendo (2015, em parceria com a escritora Maria Helena Latinni), A liturgia do tempo e outros silêncios (2019) e Aquatempo Aquatiempo, edição bilingue para o espanhol (2020) e Chão de exílio (2022). Publicou ainda as plaquetes: Discurso Sobre la Tierra, O Corpo esse mar de Sal e SangueOroborus.

 

Fonte: https://revistacaliban.net/ch%C3%A3o-de-ex%C3%ADlio-f6f54c37b24a

 




 A culpa é dos pratos

Que me destruíram

Mesmo quando poucos
São mais do que eu

Mesmo quando me lembro
Do mestre vietnamita
Que morreu lutando pelo amor
E que dizia
“Enquanto estivermos lavando os pratos
Deveríamos apenas lavar os pratos”

Não posso mais vencer os pratos
Que me ultrapassam
Mesmo quando dormem pacíficos
No armário de madeira

Para que tanto prato, meu Deus,
Pergunta meu coração
Porém meus olhos
Vocês já sabem

Então vem alguém
Que lava os pratos quando eles me atacam
E me lembra que perto
Bem perto
Há quem não tenha pratos para lavar
Nem o que pôr dentro deles

E aí me envergonho
De querer arremessá-los pela janela
Contra a parede
Ou contra os homens
Com toda a força
Que não tive para lavá-los.

 

 

TEBAS, AINDA

 

Onde você perdeu seus olhos?

Em que noite eles se esconderam

Camuflados na paisagem

Como o camaleão na floresta?

Eram duas bolas de gude castanhas

Onde o mundo se enxergava e se redescobria

O que viram para desaparecer assim?

Teriam virado pó

Quando você olhou para trás

Antes de chegar até aqui?

Por respeito tentamos cerrar suas pálpebras

Mas elas submergiram

Sugadas por dois buracos

Cheios de vazio

 

Leila Ghuenther




 Que todo dia seja feito de um mínimo possível de poesia, para que possamos seguir a resistir e a compreender os mundos de dentro...


•••••••PALAVRA
PARTO
O R
E T V
M ARREPIO
A N
DENTRO
O

Tem dias que sinto um poema empurrando a porta
não dou atenção, mas ele, silencioso e sozinho, insiste
aos poucos, quiçá um milímetro por hora ou dia,
a porta vai cedendo lugar ao vento
sim, ao vento
um vento gelado que antecede o poema

- todo poema tem um porta-voz bem indecente:
ventania cortante, que faz arrepiar os pelos, a pele, o jeito de olhar as coisas, os homens, as borboletas, os precipícios -

às vezes esse arrepio é tão danado que sacode até a alma!
é então que o milagre (ou desgraça) acontece:
a porta escancara bruscamente!
a palavra toma gosto
é enxurrada que desce goela abaixo
- garganta, nó, saliva, engasgo, sufoco -

vem a ânsia e o poema vence:
faz usucapião bem no esquerdo do peito

(invasão de poema exige da gente um certo respeito:
é preciso coragem - e estômago - para devolver ao mundo o arrepio dos pelos, da pele, das coisas, dos homens, das borboletas,
até mesmo de precipícios)

a porta - finalmente aberta - agradece
o coração, em êxtase, conseguiu enxergar a estranha paisagem no mundo de dentro!

(Nic Cardeal/2020)

@todososdireitosreservados





Bolero Blue

 

beber desse conhac

em tua boca

para matar a febre

nas entranhas entredentes

indecente é a forma

que te como bebo ou calo

e se não falo quando quero

na balada ou no bolero

não é por falta de desejo

é que a fome desse beijo

furta qualquer outra palavra presa

como caça indefesa

dentro da carne que não sai


Artur Gomes

www.fulinaimagens.blogspot.com

 

Este poema ficou por 6 anos, sendo gestado nas entranhas entredentes para ser parido. Em 1996 na primeira vez que fui a Bento Gonçalves, para o Congresso Brasileiro de Poesia, a convite do seu criador o poeta e jornalista Ademir Antônio Bacca, conheci a musa que o inspirou, na época estudante de Arquitetura.  Ficamos por um longo tempo trocando Metáforas de Fogo, através de cartas incendiárias.

Até que numa madrugada de 2002 num dos bares de Bento, que frequentávamos,  durante a realização do evento, ele nasceu cara a cara olho no olho escrito num guardanapo. Essa  passagem está em versos no poema A Poesia Pulsa, do livro O Poeta Enquanto Coisa – Editora Penalux – 2020.

 

clic no link para ver o vídeo

https://www.youtube.com/watch?v=Rwd0dnbGLvk




revoada
[sil guimarães]


sangrar o amor em nome do ódio numa emboscada
machista racista escravocrata — atalhar uma vida —

sofrer com o trabalho forçado no tribunal da memória
cochilar sobre arames farpados nunca mais dormir

conviver com minhas faces tremulando nos jornais
— estandartes da esperança renovada ad infinitum —

suportar meu corpo tomando posse de outros corpos
agigantando-se neles à cata de tolerância & justiça

: agora sou uma flor negra & altiva que a morte
regenerou e transmigrou em inúmeros pássaros

pólen néctar colibri minhas palavras espalham-se
ao vento e esse ardor você não pode emudecer

#quemmandoumatarmarielle #porquematarammarielle


extraído da time line do face de Adelaide do Julinho



O Poeta Enquanto Coisa

www.secretasjuras.blogspot.com

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