sábado, 26 de março de 2022

Coletânea Poetas Vivos

 



Trem da Consciência

Não espere que eu fale só de estrelas
Ou do vinho feliz
Que eu não tomei
Porque
Fora de mim
Não levo além da sombra
Uma camisa velha
E dentro do peito
Um balde de canções
Uma gota de amor
No útero de uma abelha

Não repare se eu não frequento o clube
Dos que sugam o sangue das ovelhas
Ou amargam o mel
Dessa colméia
É que eu já vivo
Tão pimenta
Tão petróleo
Que se você acende os olhos
Me incendeia

Hoje em dia
Pra gente amar de vera
É preciso ser quase
Um alquimista
Ou talvez o maquinista
Do trem da consciência
Pra te amar com tanta calma
E com tanta violência

Que a tua alma fique
Toda ensanguentada
De vivência

poema de Salgado Maranhão – musicado por Vital Lima – gravado por Zeca Baleiro no CD AmorÁgio

clic no link para ouvir https://www.youtube.com/watch?v=oTLb8B_firA



DÁDIVAS

Para Delon

 

Ir ao barbeiro para adiar o tempo

cobrir a vergonha com o trabalho dos homens

esconder o peso em pálpebras escuras:

fatigante o ofício de amansar ondas

restituir sulcos e cimentar poros

num corpo abandonado.

Calamos nossos desperdícios, decerto

mas a gravidade é densa e sempre vence

a maçã nos livros de física

enquanto a força da tormenta corrói

nossos cascos.

Somos fracos e secos como a sarça

que não queima.

Pudéssemos, domaríamos o leão

que esfacela o torso

mas dádivas de areia não devem ser recusadas.

 

Angel Cabeza

 


Uma aranha

ela surgiu não sei de onde
quando abri o Dicionário de Filosofia
de José Ferrater Mora
(no verbete Descartes, René;) mi-
núscula
com suas muitas perninhas
quase invisíveis
cruzou a página 1 305 como se flutuasse
(uma esfera de ar
viva)
e foi postar-se no alto
no limite entre o texto e a margem branca
enquanto eu
fascinado
indagava:
como pode residir
insuspeitado
nestas encardidas páginas
- em minha casa, afinal de contas -
um tal ser
mínimo mas vivo
consciente de si
(e como eu
parte do século XXI)
e que agora parece observar-me
tão espantado quanto estou
com este nosso inesperado encontro?

Ferreira Gullar
[Em alguma parte alguma] - 
Raptado da time line no face de Dudu Galisa




 Cálido Desejo

 

Teu luminoso riso

transborda a doçura

do tempo, evoca minhas

tardes crepusculares

e dormita os últimos

vestígios do dia.

Tua voz, pausadamente,

sussurra no compasso

do tempo e acalenta,

mansamente, o meu

cálido desejo.

Teus cabelos esvoaçantes

e encaracolados são como

os dourados raios de sol que

penetram, vertiginosamente,

minha fascinação.

Tu és o que, surpreendentemente,

surge nas esquinas e imprimes,

no tempo, a beleza e o encanto

etéreo.

Tu és a existência e a liberdade

como um pássaro que sobrevoa

o mar.

 

Dudu Galisa




 O silêncio dos espelhos

                   (lembrando Borges)


Nus e silêncios

coabitam meus espelhos


(mergulho

e

espanto)



abismos refletidos

nova e (irre)conhecida

história



Memória


Em meu dedo


o teu dedal

(tento, mãe

costurar tua memória

prender-te ao que me resta)



Incertos pontos

que a vista embaçada

não deixa urdir

 

Dalila Teles Veras

Do livro Retratos Falhados – 2008




 Nêmesis

 

ouvi o canto da sereia
(violada noiva de morticínio
e guerra) e sobrevivi (os
olhos cheios d’água, a
garganta obstruída, os
ouvidos sedosos)
com a fúria dos corações bastardos
nas cidades gentrificadas
nos bairros racistas
nos hospícios continentais
com rádios petrificados
tocando “like a stone”
para amolecer
repetidamente
o coração
(sou um terrorista
em chamas,
aquisição antiinquisição)
ouvi o canto da sereia
in a room full of emptiness
vi a incineração de bruxas
pelas próprias bruxas
a santa inquisição mudou de lado
e o pálio pasto do passado
continua idílico e ridículo
os fascistas do meu tempo
os fascistas do meu tempo
estão tomando demais
o nosso tempo
esses sujos e surdos odiadores da arte
a velha chaga, a velha cantilena
os dedos do poder sempre em riste
mas, a vida vale a pena
e tudo que existe, resiste

entre os cachos de araçá na imensidão azul,
calada, Nix lava e estrala
estrelas em sua peneira

 Fabiano Calixto



Eu costumava grifar meus livros

 

Um medo danado de nunca mais me deparar

com aquela frase. Depois passei a achar que

os grifos direcionavam muito as releituras.

E os substituí por microdobradinhas nas

páginas. (Cocteau: “Uma única frase, e o

poema todo é levado aos céus!”.) Mas se

este método tem a provável vantagem de

atenuar a arbitrariedade e a feiura dos grifos,

algumas vezes, no entanto, ao reler estas

páginas, não encontrava o motivo delas

terem sido condecoradas com a dobradinha,

ou achava mais de um motivo para tanto.

Coisas de louco com as quais, bem ou mal,

“abastecemos nossa obsessão” (Philip Roth).

Penso até que a literatura se alimenta desse

medo. (Waly Salomão: “Escrever é se vingar

da perda”.) Afinal, de onde vêm os versos

senão dos grifos e dobradinhas que aplicamos

na existência, momentos que roubamos do mundo,

instantes que nossas solidões recrutam para

(W.B. Yeats) o “imundo ferro-velho do coração”?


Marcelo Montenegro




 A Vertigem do Caos

 

um estranho entre estranhos, nômade
entre escombros, procuro sem
procurar, um não-lugar, o ventre
de látex de uma replicante quase
humana, as ruínas enfim apaziguadas
da bombonera, as águas que refluem
pra dentro da baía de todos
os infernos, ali, onde a eternidade
são os dentes de estanho do último sol
mastigando oceanos como fatias
de pizza, lançadas ao ocaso
do fundo de um naufrágio, ante
a dança misteriosa de um feiticeiro cherokee

 Ademir Assunção





Há dois anos e, quem imaginaria... a pandemia continua, sem previsão de fim...😪

QUASE AGORA


Depois a gente esfrega o chão
recolhe os tapetes
ergue os varais com as toalhas e os lençóis
corta a grama que já extrapolou os limites
abre as persianas e deixa chegar outro sol

depois a gente corta o fio
afia a navalha
estende o cordão entre as paredes
pendura as fotografias que sobrarem no baú
precisaremos afinar o olhar - o jeito certo de olhar -
para não perder nenhuma palavra desviada
daqueles olhares estancados da vida
como meros ingredientes do nada

depois a gente chora
enxuga o leite derramado
diz o amor engolido a sete chaves
corre o risco de perder a hora, o trem, a viagem depois do fim
e recolhe cada um dos abraços deixados de lado
na cama, na poltrona, na cadeira da cozinha, sobre o armário
empilha um por um, dobrados e cobrados,
nunca dados, os beijos desejados

por ora, resta-nos a máscara
o lábio amargo
a garganta seca
luvas guardando dedos sem anéis
em mãos mil vezes lavadas em água, sabão e desespero

por ora, já é quase agora
essa pobre senhora desconhecida
estendida no varal entre razões escusas
a vida - por um fio.

(Nic Cardeal, 13.03.2020)



Esperança é a revolta

 

tio sam, o insaciável comedor

não quer a existência de mais ninguém

fora de sua imensa barriga obesa

o Donald, dono de toda a riqueza,

destrói tudo que não serve pra ele,

o maior provocador de lixo do planeta

está cada vez mais voraz.

o império mais sujo impera sobre nós,

répteis dominadores,

corruptores de ratos feitores

hereditários de capitanias do sul.

A esperança é a revolta

das formigas carregadeiras

de machu piccho

aos catadores de papelão,

dos pescadores envenenados

das lamas da infâmia da terra plana

à chama da Amazônia  e do litoral .

 

 Paulo Celso Ciranda




Soneto profético

 

A bola de cristal é opaca e preta,

nela pouco se vê ou se pressente.

O vidro estilhaçado de uma greta

libera a luz noturna do presente.

Antevejo um plantio da semente

incapaz de dar paz a este planeta,

pois você, o jasmim e a violeta

florescem contra mim feito serpente.

Enxergo nada além desse horizonte,

onde ao escuro sucede o mais escuro.

O certo é não prever nenhuma ponte

que possa me levar ao seu futuro.

Na bola opaca eu leio, transtornado:

seremos bem felizes no passado

 

Antonio Carlos Secchin.




 GUERRA NA NEVE



“- mamã; pra que serve a ONU?
- pra protocolar o fim do mundo”
Do livro LUMINARES, LT, 1980

ogivas mostram seus dentes-gengivas
sirenes sibilam assobios de espanto
aquele menino aquela menina
seguem sombreados pela neblina
pisam neve respingada de sangue
fundem-se somam-se se danem
ecoam nos ouvidos ecos estampidos
silvos cantam bombas fogos estilhaços
é tempo explosivo, templo de aço
pavor em gritos: acode? quem socorre?
escorrem pedaços de prédio nas cabeças
tanques no caminho canhões retorcidos
cadáveres pelas ruas gosto de genocídio
quem garante o existo, quem diz estou vivo
olhos são vidros e não cabem lágrimas
azuis verdes vermelhas – retinas flácidas
o piscar reativa impactos clássicos

lágrimas lágrimas lágrimas secam
torradas no fogo da minha casa acesa
carrego no peito casacos brinquedos
paranoia da fuga do combate ao vivo
tostados feridos – tempos de medos
mísseis cruzam & cospem seus ativos
estradas pro inferno ônibus sem (dex)tino
meu lar meu país minha escola meus pais
pra onde? pra quando estou indo? volto
pra sentir sede e frio junto a um prato de fome
a guerra só me ensina que eu me afundo
nem tenho idade para morrer, nem pra tanto
tonto olho o céu e só vejo magias traçantes
um cogumelo brota – bruto sumo do perigo
não para de nevar gotas de sangue
no fogo minha pele ainda em chamas
é o conflito do inverno em pleno inferno
e eu, pacifista desalmado, no calor do front
na cidade onde a guerra mora ao lado, ontem

 

Luis Turiba






por onde andará Macunaíma?

 A partir do mês de maio de 2022 o Coletivo Macunaíma de Cultura passa a atuar na ONG Beija Flor em Gargaú – São Francisco do Itabapoana-RJ, com um projeto de Arte Cultura que envolve Oficinas de Arte, Teatro, Desenho, Rodas de Conversa, Música, Fotografia e Produção Cine Vídeo e uma Oficina de Leitura Para Ler O Mundo.

 Dentro do projeto está incluída ainda a criação da Biblioteca Bracutaia e Encenações de Teatro Pupular com a Cia Desafio de Teatro.

 leia mais no blog

https://coletivomacunaimadecultura.blogspot.com/2022/03/por-onde-andara-macunaima.html



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