sexta-feira, 4 de março de 2022

Coletâne Poetas Vivos - Marcelo Mourão



 Amaremorto

 

Morta, a folha se solta.

Voa, não volta, vai solta,

sem rota, à toa e torta,

até tocar a terra, morta.

 

Morta, a flor não perfuma,

não enfeita nem deslumbra

pétalas pendem, peso pluma,

e pousa na terra, morta.

 

Morta, a planta despenca.

Murcha, descora, se apequena.

Não cura nem ornamenta.

Desfaz-se na terra, morta.

 

Roto, o amor roda solto,

corda em volta do pescoço,

alma estilhaçada no corpo,

precisando só de um sopro

 

para tombar, vegetal oco,

sobre a terra infértil, morto.

 

 XAMÃ DE SI

 

            Em certa manhã, ao acordar de sonhos inquietos,

Gregor Samsa saiu de sua cama

transformado em um grande inseto.

 

Bastou abrir a porta do quarto

que o mundo desabou a julgá-lo

só porque ele mudara de aspecto.

 

Sua condição era errada ou correta?

De todos os cantos, brotaram juízes

metendo seus olhos, dedos, narizes,

querendo lhe ditar todas as regras.

 

Mas Gregor sabe que só ele é seu guia

e seu único deus nessa travessia.

E que, por mais que caminhe pra frente,

haverá sempre quem lhe sirva de oposto.

 

Por fim, entendeu: insetos são os outros.

 

 

 DESCONSTRUIÇÃO

 

Quando os pais e os avós

vão aos poucos morrendo

é como um prédio antigo

perdendo os pavimentos.

Mas não é ele que cai:

    sou eu

                                          desmoronando

              por dentro.

 

 

ESCAVATÓRIA

 

Foram encontrados esconderijos.

Túmulos vários existem em mim.

Céus, umbrais, infernos, paraísos

são flores secas dentro de um livro

com códigos que nem eu sei ler.

 

Guardo em mim pessoas conhecidas

e outras que jamais antes vi:

crianças, jovens, adultos, idosos,

todos com algo para me dizer

e eu sempre pronto para ouvir.

 

Em mim, trago inúmeros cacos,

trapos, paetês, luzes de neon.

E também sanatórios, lupanares,

hospitais, presídios, santuários,

todos juntos em plena ebulição.

 

Foram achados utensílios, armas,

roupas, retalhos, fotos, mapas:

meu sítio arqueológico subaquático

fundo do mar em forma de mosaico

colcha de naufrágios costurados.

 

 

SUBMARINO

 

Dormir

é domar correntezas

singrar um longeaqui

 

Sonhar

é sondar profundezas

buscar destroços de si

 

Morrer

é não mais emergir

 

Desconectados

 

A fome tem nome, sobrenome,

e não esconde seus rostos,

é letreiro de neon piscando

por toda parte, o tempo todo.

 

E nós, aqueles que ainda comem,

seguimos sonâmbulos,

placidamente deslizando

nossas telas de smartphones.

 

 

A PARÁBOLA DO ILUMINADO

 

Vivia na escuridão.

Encontrou uma vela:

que grande emoção!

Anos e anos na cela.

Custou a se acostumar

com luz, cor e som.

Mas aí, depois da vela,

achou uma lanterna.

Nem se lembrava mais

dos tempos de caverna.

Mas a vida sempre voa

e até a própria lanterna

deixou de ser tão boa.

Buscou então um farol.

Depois desejou a lua,

as estrelas, os cometas.

E, por fim, quis o sol,

para colocá-lo inteiro

à sua disposição.

Brincou de deus e diabo

e ficou cego com

tanta iluminação.

Mal sabia o “iluminado”

que a tristeza da escada

é sonhar céu e acordar chão.

 

Elevação

      

“Agora sou leve, agora voo; agora vejo por baixo

de mim mesmo, agora salta em mim um Deus”

 (Nietzsche em “Assim falou Zaratustra”)

 

O céu fecha.

A terra treme.

O mar ferve.

O mundo balança.

 

Ainda assim

dentro de mim

um deus dança.

Castigo

Um menino de rua

perguntou ao outro,

que também era indigente:

 

- Por que Papai Noel nunca

deu nada pra gente?

 

- Ouvi dizer que criança

que não come

não ganha presente...

 

 

pássaro de fogo

 

segurar

o que já

não está

inteiro aqui

machuca mais

do que deixar

ir

 

Marcelo Mourão

Marcelo Mourão é mestre e doutorando em Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Poeta, escritor, artista plástico, pesquisador, crítico literário e produtor cultural, criou, produz e apresenta o Sarau POLEM (Poesia no Leme), iniciado em 2008 no bairro do Leme (RJ). Desde 2021 é o Vice-Presidente da União Brasileira De Escritores – Seção Rio de Janeiro (UBE-Rio). Criou e vem desenvolvendo o gênero poético POEMEMES. Há textos seus publicados em várias antologias, periódicos literários, sites e revistas acadêmicas do Rio de Janeiro e de outros estados brasileiros. Publicou 3 livros de poemas: O diário do Camaleão (2009), Máquina mundi (2016) e POEMEMES (2021), além de 3 livros de crítica literária Temas em literatura de língua portuguesa: os diferentes olhares (2015), Rotas e rostos: questões da literatura brasileira (2019) e Mosaico (2022). Contatos: polem-rio@gmail.com





Nação Goytacá

www.fulinaimargem.blogspot.com

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