Amaremorto
Morta, a folha se solta.
Voa, não volta, vai solta,
sem rota, à toa e torta,
até tocar a terra, morta.
Morta, a flor não perfuma,
não enfeita nem deslumbra
pétalas pendem, peso pluma,
e pousa na terra, morta.
Morta, a planta despenca.
Murcha, descora, se apequena.
Não cura nem ornamenta.
Desfaz-se na terra, morta.
Roto, o amor roda solto,
corda em volta do pescoço,
alma estilhaçada no corpo,
precisando só de um sopro
para tombar, vegetal oco,
sobre a terra infértil, morto.
XAMÃ DE SI
Em certa manhã, ao acordar de sonhos inquietos,
Gregor Samsa saiu de sua cama
transformado em um grande inseto.
Bastou abrir a porta do quarto
que o mundo desabou a julgá-lo
só porque ele mudara de aspecto.
Sua condição era errada ou correta?
De todos os cantos, brotaram juízes
metendo seus olhos, dedos, narizes,
querendo lhe ditar todas as regras.
Mas Gregor sabe que só ele é seu guia
e seu único deus nessa travessia.
E que, por mais que caminhe pra frente,
haverá sempre quem lhe sirva de oposto.
Por fim, entendeu: insetos são os outros.
DESCONSTRUIÇÃO
Quando os pais e os avós
vão aos poucos morrendo
é como um prédio antigo
perdendo os pavimentos.
Mas não é ele que cai:
sou eu
desmoronando
por dentro.
ESCAVATÓRIA
Foram encontrados esconderijos.
Túmulos vários existem em mim.
Céus, umbrais, infernos, paraísos
são flores secas dentro de um
livro
com códigos que nem eu sei ler.
Guardo em mim pessoas conhecidas
e outras que jamais antes vi:
crianças, jovens, adultos,
idosos,
todos com algo para me dizer
e eu sempre pronto para ouvir.
Em mim, trago inúmeros cacos,
trapos, paetês, luzes de neon.
E também sanatórios, lupanares,
hospitais, presídios, santuários,
todos juntos em plena ebulição.
Foram achados utensílios, armas,
roupas, retalhos, fotos, mapas:
meu sítio arqueológico subaquático
fundo do mar em forma de mosaico
colcha de naufrágios costurados.
SUBMARINO
Dormir
é domar correntezas
singrar um longeaqui
Sonhar
é sondar profundezas
buscar destroços de si
Morrer
é não mais emergir
Desconectados
A fome tem nome, sobrenome,
e não esconde seus rostos,
é letreiro de neon piscando
por toda parte, o tempo todo.
E nós, aqueles que ainda comem,
seguimos sonâmbulos,
placidamente deslizando
nossas telas de smartphones.
A
PARÁBOLA DO ILUMINADO
Vivia na escuridão.
Encontrou uma vela:
que grande emoção!
Anos e anos na cela.
Custou a se acostumar
com luz, cor e som.
Mas aí, depois da vela,
achou uma lanterna.
Nem se lembrava mais
dos tempos de caverna.
Mas a vida sempre voa
e até a própria lanterna
deixou de ser tão boa.
Buscou então um farol.
Depois desejou a lua,
as estrelas, os cometas.
E, por fim, quis o sol,
para colocá-lo inteiro
à sua disposição.
Brincou de deus e diabo
e ficou cego com
tanta iluminação.
Mal sabia o “iluminado”
que a tristeza da escada
é sonhar céu e acordar chão.
Elevação
“Agora sou leve, agora
voo; agora vejo por baixo
de mim mesmo, agora salta
em mim um Deus”
(Nietzsche em “Assim falou Zaratustra”)
O céu fecha.
A terra treme.
O mar ferve.
O mundo balança.
Ainda assim
dentro de mim
um deus dança.
Castigo
Um menino de rua
perguntou ao outro,
que também era indigente:
- Por que Papai Noel nunca
deu nada pra gente?
- Ouvi dizer que criança
que não come
não ganha presente...
pássaro
de fogo
segurar
o que já
não está
inteiro aqui
machuca mais
do que deixar
ir
Marcelo Mourão
Marcelo
Mourão é mestre e doutorando em
Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Poeta, escritor, artista plástico, pesquisador, crítico literário e produtor cultural,
criou, produz e apresenta o Sarau POLEM (Poesia no Leme), iniciado em 2008 no
bairro do Leme (RJ). Desde 2021 é o Vice-Presidente da União Brasileira De
Escritores – Seção Rio de Janeiro (UBE-Rio). Criou e vem desenvolvendo o gênero
poético POEMEMES. Há textos seus publicados em várias antologias, periódicos
literários, sites e revistas acadêmicas do Rio de Janeiro e de outros estados
brasileiros. Publicou 3 livros de poemas: O diário do Camaleão (2009), Máquina
mundi (2016) e POEMEMES (2021), além de 3 livros de crítica literária Temas em
literatura de língua portuguesa: os diferentes olhares (2015), Rotas e rostos:
questões da literatura brasileira (2019) e Mosaico (2022). Contatos: polem-rio@gmail.com
Nação Goytacá
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