terça-feira, 22 de março de 2022

Coletânea Poetas Vivos

 


 MEIA5


vi meu rosto
no espelho
do açude

bebi o mergulho
que o tempo soma

lagarta subindo
na figueira

sumi do rosto
que havia

caminhei sem
passos no pasto

vida ligeira
mundo vasto

O Outono chega num equinócio entre o dia 20 e 21 de março. Eu cheguei no dia 21 de março de 1957. Filho de Maria Joanna e Theodoro. Nasci na fronteira do Brasil com o Uruguai e nunca mais abandonei os extremos.

Aos 20, não sabia se chegaria aos trinta. Em plena ditadura, lutar era um verbo que me acompanhava. Sonhar, também. Cruzei os trinta, os quarenta, os cinquenta e chego aos 65 com fome de vida. Querendo mais.

Enquanto o Sol vai entrando em Áries, vou arrumando a mochila para mais uma jornada. Sou de Lua. Voto em Lula. Caminho sem medo do futuro, sem vergonha dos meus rastros.

Enfim, sigamos preparando o mundo dos que virão. O futuro é o traçado primordial dos nossos dias,

Um beijo, um abraço aos que celebram a vida. Mesmo em tempos incertos. Gracias a la vida, pois o que colhi entre alegrias e tristezas é o que me mantém vivo. 

 

Lau Siqueira


Um recado

 

No lugar do poema cotidiano,

hoje deixo um pequeno recado,

que diz mais ou menos assim:

Encontre suas figuras de linguagem,

suas metáforas, suas anáforas,

suas sinestesias...

Porque o poema está revirado,

remexido, pelo avesso,

sem alegria.

E o poeta, entristecido, sem saber

o que dizer, o que falar

o que contar,

pegou a bicicleta, e partiu

em busca de prosa

na rua de palha...

Lá flutuam mares,

marulham luas,

orvalham dias,

cheios de versos, linhas, cheiros

formas, cores, ritmos, sons,

sabores...

poesia!

 

Joilson Bessa da Silva.

Alphaville, 16, 18 e 20 de março de 2022.


para comemorar os 69 de ana cristina césar, em 2021

[ o que está entre aspas é dela

imagem de laura makabresku ]

bolero para uma tarde de granizo

[sil guimarães]

"Enquanto leio, meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver seus bicos. Então, rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio". Palavra vendada. Vida sem cura. Tudo o que afasta as manhãs. Passarinho pegando fogo enquanto voa.

Taí. Eu fiz tudo. Contei carneirinhos. Rasguei sombras. Apaguei reticências. Enredei lembranças. Remendei o passado. Soltei o verbo e os cachorros. O que a gente não é capaz de fazer para não perder o resto da esperança?

Atrás de morro, morro. E é de amor.

Uma borboleta gira à minha volta. Treme no meu ombro antes do voo fatal: lembrança do casulo.

Tenho uma janela aberta e límpida à minha espera:



suspenso

no Ar

não penso

atravesso

o portão da tua casa

o corpo em fogo

a carne em brasa

tudo arde

nas cinzas das horas

no silêncio da tarde

vou entrando sem alarde

sem comício

como o pássaro

que acaba de cantar

em pleno hospício

 

você pensa que escrevo em rua reta ou estrada sinuosa para você poesia é verso do inverso ou avesso de uma prosa? escrevi pscanalítica 67 em mil novecentos e sessenta e sete numa madrugada de setembro outubro quando visitei meu pai no henrique roxo e vi vespasiano contra a parede dando cabeçadas no manicômio mais uma vida exterminada e no fim das contas noves fora nada tudo o que eu queria dizer naquela hora explode agora quando atravesso o portão da tua casa o corpo em fogo a carne em brasa sem pensar estética estrutura estilo de linguagem sinto o desejo entre os teus mamilos a espera do beijo da esfinge que devora

 

Artur Gomes

PoÉticas ArturiAnas

www.arturkabrunco.blogspot.com





 #EmPelo


Nua,
a fazer fremer os violinos,
afligir o pensar
em lânguidas vertigens
dos meus íntimos.

Assim me ponho, 

 

Neusa Pivatto




num barco q afunda

o pânico ameaça

porque todos e sobretudo
os marinheiros só falam

obstinadamente
a língua das navegações

nenhum fala a língua
dos afogados

 

Pat Lau




 CORREDOR DA MORTE

 

Quem, em um corredor da morte

(passos diários de todas as vidas)

escolherá, como último alimento,

a fome?

(que tragam chocolates e vinhos,

comidas exóticas, comida de mãe

doces da infância, o amargo, todos

os temperos)

alguns escolhem

o prato vazio

de quem recusa.

***

Eduardo Lacerda




 A UNIÃO LIVRE


Minha mulher com o cabelo de fogo de lenha
Com pensamentos de relâmpagos de calor
De talhe de ampulheta
Minha mulher com a talhe de lontra entre os dentes de tigre
Minha mulher com a boca de roseta e de buquê de estrelas de última grandeza
Com dentes de rastro de camundongo sobre a terra branca
Com língua de âmbar e de vidro em atritos
Minha mulher com língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de inacreditável pedra
Minha mulher com cílios de lápis de cor das crianças
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa
E de vapor nos vidros
Minha mulher com espáduas de champanhe
E de fonte com cabeças de delfins sob o gelo
Minha mulher com pulsos de fósforos
Minha mulher com dedos de acaso e de ás de copas
De dedos de feno ceifado
Minha mulher com axilas de marta e de faia
De noite de São João
De ligustro e de ninho de carás
Com braços de espuma de mar e de eclusa
E de mistura do trigo e do moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e de desespero
Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de chaveiros com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com a garganta de Vale d’Ouro
De encontro no leito mesmo da torrente
Com seios de noite
Minha mulher com seios de toupeira marinha
Minha mulher com seios de crisol de rubis
Com seios de espectro da rosa sob o orvalho
Minha mulher com ventre de desdobra de leque dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com dorso de pássaro que foge vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolada e de giz molhado
E de queda de um copo do qual se acaba de beber
Minha mulher com ancas de chalupa
Com ancas de lustre e de penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher com nádegas de arenito e de amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de gladíolo
Minha mulher com sexo de mina de ouro e de ornitorrinco
Minha mulher com sexo de algas e de bombons antigos
Minha mulher com sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e de agulha magnetizada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de madeira sempre sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.

Poema de André Breton

Tradução: Priscila Manhães e Carlos Eduardo - Raptado da time line no face de Claudio Daniel




 Venho por este caminho

de onde não existe destino

tampouco razão

é o caminho difícil

daqueles que só ouvem não.

Vim pelo caminho estreito

por entre as encruzilhadas

onde se morre suspeito

onde se vive por nada.

Neste espaço de amor e ódio

trago uma flor na lapela

uma rosa vermelha no peito

e neste tempo nada romântico

troco farpas e disfarces

com meu oculto sujeito.

 

Jidduks




 no poema, o desafio:

juntar as 2 margens

do rio.

 

Romério Rômulo




NÃO HÁ VAGAS

O preço do feijão

não cabe no poema.
O preço do arroz
não cabe no poema.

Não cabem
no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila
seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

— porque o poema,
senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira




 Ferreira Gullar

José Ribamar Ferreira – Ferreira Gullar -, foi poeta, escritor, tradutor e teatrólogo. Considerado um dos maiores autores brasileiros do século XX, foi um dos fundadores do neoconcretismo, movimento marcado pela oposição ao concretismo e defesa de uma maior subjetividade e expressividade artística, liberdade de experimentações e criações artísticas.

Ferreira Gullar nasceu em São Luiz do Maranhão, em 1930, publicou seu primeiro livro, “Um Pouco Acima do Chão”, em 1949. Com o golpe militar, em 1964, foi preso e exilado — passou por Moscou, Santiago, Lima e Buenos Aires, só retornando ao Brasil em 1977. Durante o exilio na Argentina, escreveu sua magnum opus, o “Poema Sujo”, um longo poema, com quase 100 páginas, que foi traduzido em 25 países.

Em 1980, publicou “Na Vertigem do Dia” e “Toda Poesia”, que reunia toda sua produção poética até então. Em 1985, pela tradução da peça “Cyrano de Bergerac”, ganhou o prêmio Molière, o mais importante do teatro nacional. Indicado ao Nobel de Literatura em 2002, o escritor acumulou uma série de prêmios literários durante a sua trajetória, com desataque para os Prêmios Jabuti de Ficção e Poesia, e o Prêmio Camões. Em 2014, Gullar foi eleito para a cadeira nº 37 da Academia Brasileira de Letras. Ferreira Gullar morreu em 4 de dezembro de 2016, aos 86 anos.

Compartilhamos acima um dos grandes poemas do autor. Escrito em 1963, Não há vagas faz uma crítica direta às condições de vida da população, enquanto vivíamos as inquietações do período de ditadura militar. Uma produção que nos ajuda a refletir sobre o cenário social brasileiro, passado e presente.

fonte: Revista Bula


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