POLEGAR
o polegar é um fruto feio
entre a prole sã
uma degenerescência da estirpe
desagregado dos outros por um precipício para sempre em degredo
deselegante
com sua falange hipoplásica
enquanto os irmãos são graciosos
e contíguos em camaradagem
mas é essa apartação que permite
o movimento em pinça
traço distintivo de nossa espécie
e nem a braquidactilia lhe tirou tal mérito
INTENTO
Divanize Carbonieri
é doutora em letras e professora de literaturas de língua inglesa na UFMT. É autora dos livros de poemas Entraves (2017), Grande depósito de bugigangas (2018), A ossatura do rinoceronte (no prelo) e Furagem (no prelo), além da coletânea de contos Passagem estreita (2019).
IV
Os pelos de uma mulher crescem tão
silenciosos
que
os educadores de biologia,
os poetas inspirados pelas musas.
que
somente ela os sabe
quando se observa e se acarinha,
Algumas profecias dizem que
todas as vezes
seus restos descem pelo ralo e
alimentam os monstros que um dia invadirão o mundo.
Samantha Abreu
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da série 'sobre a ordem dos mícrones'
SEGUNDA LUA
O que dizer sobre o esqueleto da noite?
Dizer o enquanto
da tíbia, fíbula,
fêmur, no quase
sempre da
escápula
a sombra do crânio te assombra
te esmurra com o cutelo
das mãos
esmigalha teu sexo morto como zumbi
por isso o úmero
o esterno o frontal
de tua mente perturbada
úmida iriando occipitais
na última luz de pedrarias persas
mas você tem medo
do canto, enquanto,
entretanto
da palavra óssea que te soca
no final escuro
de uma rua
sem saída
você morre de medo
de um homem-réptil
que é você
sua face escamosa
seu peito escamoso
suas mãos seus pés
escamosos
você monstro escamoso
tem medo da gigante
iguana verde
do pesadelo
você tem medo de sua cabeça
nervurada
de seus pés ao contrário
você sonha e tem medo
da sanha
da criança medonha
que te assopra
no ouvido
palavras sujas
teu medo de hoje
de ontem
dura-máter de anteontem
no entressonho
dos entornos
pode ser a mão morta
de tua mãe atrás da porta
pode ser a lua nova
que zomba de ti
em tua cova
talvez o medo seja
uma mulher louca e preta
com pentelhos pretos
na buceta
mas você não sabe
o que dizer sobre o esqueleto da noite
rótula, sacro, clavícula
em lugarejos
de quando
se você estiver indo
eu estarei voltando
se você estiver sorrindo
eu estarei morrendo
e a lua nova flor de tântalo
apenas te cospe
após a longa noite estrelada
na dura e solene
madrugada
em que você se levanta
da cama
para viver mais um dia
do mais profundo horror.
Claudio Daniel
Poema inédito de meu livro Sete Olhos, a sair
neste ano.
RETRATO DE MULHER
Já fui mais velha,
no passado morri.
Ressuscitei
ao me queimar ao sol
e me afogar no azul.
Já fui menos vulgar
que o final destes versos.
Procuro hoje,
o rítmo da vida,
que enterrei lá atrás,
à margem do caminho.
Na poesia me encanto.
Me viro, brigo, luto
contra o medo
que um dia me escondeu
e me fez tão tristonha.
Não tenho mais senso,
perdi a vergonha.
Maria do Carmo Bomfim
Lívia Tucci
Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
Conceição Evaristo
Mulher,
meu poema
se completa em teu vestido
roçando a tua carne
no algodão tecido
meu ofício é de poeta
pra rimar poema e blusa
pra ficar em tua pele
pelo tempo em que me usa
o preço atual proíbes
que me comas
mas pra ti estou de graça
pra ti não tenho preço
sou em quem me ofereço
a ti : músculo e osso
leva-me à boca
e completa o teu almoço
Artur Gomes
Suor & Cio
MVPB Edições - 1985
www.fulinaimagens.blogspot.com
Mulher livre hoje, amanhã, sempre!
D(R)ESISTÊNCIA
Desisti de ir pra Pasárgada
o trem anda fora dos trilhos, eu sei
as loucas somos nós aqui soltas
sem conseguir comer
nem o pão que o diabo amassou
quem dera beber o vinho
o sangue do cristo (destituído)
as mulheres sangrando
muito mais do que entre as pernas
- no esquerdo do peito -
a dor de um desamor medonho
daqueles homens que vêm, vão,
e matam
desisti de ir pra Pasárgada
a passarada ainda canta
na cortina de fumaça
a fogueira alheia das desgraças
outras desgraças tão nuas
não adianta a rosa vermelha num dia
n'outro a vermelhidão no rosto
o tapa esfolando até pingar no prato
o vermelho sangue
o vermelho batom
a bota o chute a arma o cuspe
quanto nos custará a culpa?
(tu cospes ou engoles tua culpa?)
se você é amigo do rei
pode ir
eu fico
insisto
e resisto
'inda que seja vã
tão efêmera esperança
(Nic Cardeal, 08.03.2020)
* arte da mana Márcia Cardeal
O Poeta Enquanto Coisa
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