quarta-feira, 9 de março de 2022

Coletânea Poetas Vivos



 

POLEGAR

 

o polegar é um fruto feio

entre a prole sã
uma degenerescência da estirpe

desagregado dos outros por um precipício para sempre em degredo

deselegante

com sua falange hipoplásica
enquanto os irmãos são graciosos
e contíguos em camaradagem

mas é essa apartação que permite

o movimento em pinça
traço distintivo de nossa espécie

e nem a braquidactilia lhe tirou tal mérito

 

 

 

 INTENTO

a mão braquidátila
não mais datilografa
nem escreve à caneta
com caligrafia firme

a mão braquidátila
se estica sobre o teclado
seus dígitos encurtados
cobrem todos os caracteres

a mão braquidátila é como um cabo
que conecta o cérebro à máquina
instrumento que capta num átimo
o intento de uma arte máxima

 Divanize Carbonieri  



 Divanize Carbonieri  

é doutora em letras e professora de literaturas de língua inglesa na UFMT. É autora dos livros de poemas Entraves (2017), Grande depósito de bugigangas (2018), A ossatura do rinoceronte (no prelo) e Furagem (no prelo), além da coletânea de contos Passagem estreita (2019).


fonte:https://www.revistapixe.com.br/divanize-carbonieri-29 fbclid=IwAR1fmR1PG3jdD7mHYsRO3ExHpvsmevmBFxZImmUDiSEdhS2wYQQk6yGD3gM







IV


Os pelos de uma mulher crescem tão

silenciosos

que

não sabem deles os grandes
debatedores políticos,

os educadores de biologia,

os poetas inspirados pelas musas.

Nenhuma legislação precisa ser criada
para que os pelos cresçam inabaláveis,

não precisam de autorização para
tomarem o corpo como se conquistassem um reino.

Não escutaram seus ruídos os
compositores que foram capazes de finalizar o Réquiem,

não são perceptíveis aos cineastas
iranianos nem cabem no silêncio do menino Antoine Doinel olhando as franjas das
ondas.

Os pelos brotam no rosto de
Clémentine Delait

sem que os bichos sintam inveja, sem
que um gato se arrepie diante do mistério,

Senhoras Doloridas enfim não precisam
inventar encantamentos para seus rostos de cavaleiros.

Os pelos de uma mulher crescem tão
silenciosos

que

somente ela os sabe

quando se observa e se acarinha,

a aspereza das pontas abrindo os
poros.

Algumas profecias dizem que

todas as vezes

que uma mulher corta, raspa ou depila
seus pelos

- tomando para si o disfarce da
lisura -,

seus restos descem pelo ralo e

alimentam os monstros que um dia invadirão o mundo.

Samantha Abreu

________________

da série 'sobre a ordem dos mícrones'



SEGUNDA LUA

O que dizer sobre o esqueleto da noite?
Dizer o enquanto
da tíbia, fíbula,
fêmur, no quase
sempre da
escápula
a sombra do crânio te assombra
te esmurra com o cutelo
das mãos
esmigalha teu sexo morto como zumbi
por isso o úmero
o esterno o frontal
de tua mente perturbada
úmida iriando occipitais
na última luz de pedrarias persas
mas você tem medo
do canto, enquanto,
entretanto
da palavra óssea que te soca
no final escuro
de uma rua
sem saída
você morre de medo
de um homem-réptil
que é você
sua face escamosa
seu peito escamoso
suas mãos seus pés
escamosos
você monstro escamoso
tem medo da gigante
iguana verde
do pesadelo
você tem medo de sua cabeça
nervurada
de seus pés ao contrário
você sonha e tem medo
da sanha
da criança medonha
que te assopra
no ouvido
palavras sujas
teu medo de hoje
de ontem
dura-máter de anteontem
no entressonho
dos entornos
pode ser a mão morta
de tua mãe atrás da porta
pode ser a lua nova
que zomba de ti
em tua cova
talvez o medo seja
uma mulher louca e preta
com pentelhos pretos
na buceta
mas você não sabe
o que dizer sobre o esqueleto da noite
rótula, sacro, clavícula
em lugarejos
de quando
se você estiver indo
eu estarei voltando
se você estiver sorrindo
eu estarei morrendo
e a lua nova flor de tântalo
apenas te cospe
após a longa noite estrelada
na dura e solene
madrugada
em que você se levanta
da cama
para viver mais um dia
do mais profundo horror.

 

Claudio Daniel

Poema inédito de meu livro Sete Olhos, a sair neste ano.



 

RETRATO DE MULHER

 

Já fui mais velha,

no passado morri.

Ressuscitei

ao me queimar ao sol

e me afogar no azul.

Já fui menos vulgar

que o final destes versos.

Procuro hoje,

o rítmo da vida,

que enterrei lá atrás,

à margem do caminho.

Na poesia me encanto.

Me viro, brigo, luto

contra o medo

que um dia me escondeu

e me fez tão tristonha.

Não tenho mais senso,

perdi a vergonha.

 

Maria do Carmo Bomfim




SENSORIAL

Boca, dedos,
claves de tato e sopro,
arrancam do sono, segredos ,
dos lavradores do corpo.

Navegar é preciso,
na curva macia das costas,
no ranger de dentes, no riso,
em todas as fraturas expostas.

Há que sorver da taça, em gole
e degustar os fragmentos na hora exata,
há que verter da fonte, a ode
e deglutir o mar, vale em cascata.

Decifrar é preciso,
as raízes solidárias de outros veios,
o mergulho no avesso dos sentidos,
na energia estática desses pêlos.

Há que ser como as palafitas,
em membranas invisíveis, perfurar,
a carne úmida que crepita
e do talhe, o sumo, o cheiro, represar.

Navegar é preciso
por matas que anunciam rotas,
desnorteiam os cursos, refúgios incisos,
no velejar de corpos em frotas.

Há que ungir cavernas túrgidas,
toda nua, toda túmida, toda nua
e toda tua, decifrar se preciso
um vulto de mulher
que no espelho dança,
o signo dos cabelos, um pólen na garganta
e o canto mudo que os sentidos lançam.

Nesse navegar, seremos sempre complicados,
nesse decifrar, aleijados por teimosia,
mas sempre haverão livros nas estantes,
para nos sobreviver,
o feitiço da teoria.

 

Lívia Tucci

DO LIVRO O Avesso do Cristal,  
Copyright®Lívia Tucci
Adquira um exemplar!
Foto: Marcus Mendra 


Vozes-mulheres

 

A voz de minha bisavó

ecoou criança

nos porões do navio.

ecoou lamentos

de uma infância perdida.

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela.

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e

fome.

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

o eco da vida-liberdade.

 

Conceição Evaristo




Mulher,

meu poema

se completa em teu vestido

roçando a tua carne

no algodão tecido

 

meu ofício é de poeta

pra rimar poema e blusa

pra ficar em tua pele

pelo tempo em que me usa

 

o preço atual proíbes

que me comas

mas pra ti estou de graça

pra ti não tenho preço

sou em quem me ofereço

a ti : músculo e osso

leva-me à boca

e completa o teu almoço

 

 Artur Gomes

Suor & Cio

MVPB Edições - 1985

www.fulinaimagens.blogspot.com


Mulher livre hoje, amanhã, sempre!




 Enquanto estivermos morrendo todos os dias pela 'doença do machismo', eu não consigo compreender o 'dia da Mulher'...

 

#8M2022

D(R)ESISTÊNCIA

 

Desisti de ir pra Pasárgada

o trem anda fora dos trilhos, eu sei

as loucas somos nós aqui soltas

sem conseguir comer

nem o pão que o diabo amassou

quem dera beber o vinho

o sangue do cristo (destituído)

as mulheres sangrando

muito mais do que entre as pernas

- no esquerdo do peito -

a dor de um desamor medonho

daqueles homens que vêm, vão,

e matam

desisti de ir pra Pasárgada

a passarada ainda canta

na cortina de fumaça

a fogueira alheia das desgraças

outras desgraças tão nuas

não adianta a rosa vermelha num dia

n'outro a vermelhidão no rosto

o tapa esfolando até pingar no prato

o vermelho sangue

o vermelho batom

a bota o chute a arma o cuspe

quanto nos custará a culpa?

(tu cospes ou engoles tua culpa?)

se você é amigo do rei

pode ir

eu fico

insisto

e resisto

'inda que seja vã

tão efêmera esperança

 

(Nic Cardeal, 08.03.2020)

* arte da mana Márcia Cardeal



O Poeta Enquanto Coisa

www.secretasjuras.blogspot.com

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