sexta-feira, 18 de março de 2022

Coletânea Poetas Vivos - Leila Miccolis

Leila Miccolis Três poemas inéditos  e poemas do livro Desfamiliares

 

RETRATO EM SÉPIA

São poderosas as baratas:
as mulheres têm medo delas;
os homens provam seu poderio
sobre elas (as mulheres),
matando-as (as baratas).
No entanto, são meigas.
E se tivessem tetas
amamentariam
como qualquer mãe.

 

ASSEIO

    (Primeiro poema a Ragnar)

Quando ele volta do banho
cheirando artificial a flor,
meu gato lambe-se todo
para tirar o fedor.

 

CADA FALSO...

Me chamas de princesa,
de tua alteza,
de rainha do lar,
mas me manténs presa
no castelo-fortaleza,
e todos os dias mandas
me decapitar.


PESSOAL E INTRANSFERÍVEL


Chegou a “Pequena Notável”,
de bolso, sou descartável;
mas não se deixe enganar
com o que eu posso aparentar:
se nos frascos pequeninos
há os perfumes mais finos,
é também neles que vemos
os mais terríveis venenos...

Não tenho nenhum complexo,
transo tudo, até em sexo,
eu gosto de ser assim,
ninguém esquece de mim...

Gasto pouco com feijão,
com roupa, e na condução,
— se o trocador não bronqueia —,
eu às vezes pago meia...

Por fim, tenho outra vantagem:
eu caibo em qualquer bagagem.
E quem se atreve e se enleva
vê que sou leve e me leva...

Assim, por mais que eu ande,
com minha miudez eu venho sempre a aprender
que ninguém precisa ser gente grande.
Precisa é SER!

 

ALVOS

Se saio com quatro pedras na mão
me chamam de doida;
eu sorrio e os apedrejo,
pra aprenderem
que as loucas têm perfeita pontaria.

 

GERAÇÃO INDE(x)PENDENTE

Em vez de me deitar na cama,
resolvi criar fama.
E aí comecei a fazer versos, a mendigar editores,
como se eles fizessem grandes favores
em nos publicar...

 

E de tanto batalhar, virei... poeta
— um grande passo em minha meta,
porque em poetisa todo mundo pisa.
E quando me consideraram menina prodígio,
consegui que um crítico de prestígio
analisasse minha papelada.
Ele deu uma boa folheada,
pensou, pesou e sentenciou:
— "Incrível... não tem nível..."
Juro que fiquei com muita mágoa
porque, afinal, quem precisa de nível
é caixa d'água...

VÃ FILOSOFIA...

Falas muito de Marx,
de divisão de tarefas,
de trabalho de base,
mas quando te levantas
nem a cama fazes...

 

NOVO AMOR 

Meu coração nunca para
pra comparar, solta amarras,
vive seu tempo presente:
se ferido, em mim se ampara;
mas quando sara e se sente
contente, fica eloquente,
feito algazarra de araras.

 

MANCHAS

Cansada de brigar e botar banca,
num dos raros momentos de ternura,
eu hasteei minha bandeira branca
um tanto amarelada de gordura.

 

NOSTALGIA

Ainda há marcas do nosso idílio:
pegaste doença
e eu peguei filho.

 

DEVASTAÇÃO

Vêm os jovens
e escrevem nas árvores seus nomes entrelaçados;
voltam adultos
e destroem esses corações apaixonados.

 

TENTATIVA DE SUICÍDIO

Foi ao toalete
e cortou os sonhos,
a gilete.

 



MISSÃO COMPRIDA 


Você conseguiu tudo na vida:
uma grande barriga bem alimentada,
uma amante infiel
uma esposa comportada
carro do ano
filhos rebeldes ao teu jugo tirano
casa própria,
emprego com crachá
um sítio em Visconde de Mauá
um ufanista amor pelo país
tudo como manda o figurino
(de Paris).
E morrerá, cumprindo a sua parte,
de tensão ou de enfarte,
de repente,
sem nem ao menos de longe perceber
que podia ter sido diferente.




Leila Miccolis

fonte: http://revistacazemek.blogspot.com/2017/04/leila-miccolis-tres-poemas-ineditos-e.html

 

 Leila Míccolis (Rio de Janeiro1947) é uma poeta, ensaísta, romancistacontista, roteirista de cinema e televisãodramaturga e editora brasileira. Estreia na poesia em 1965 com o livro Gaveta da Solidão, e foi publicada na antologia 26 poetas hoje, em 1975, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda.

Descendente de gregos e italianos, formou-se em Direito em 1969, pela antiga Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo exercido a profissão de advogada até 1977, quando decidiu dedicar-se exclusivamente à literatura.

Em 1983 começou a escrever roteiros para a televisão, vindo a ser co-autora de telenovelas como Kananga do Japão (1989), com Wilson Aguiar Filho (1951-1991), e Barriga de Aluguel (1990), com Glória Perez (1948).[1]

Fundou, em 1991, com o também poeta Urhacy Faustino (1968), seu marido, o jornal literário "Blocos", que ganhou uma versão virtual oito anos depois. Entre 2004 e 2007, fez o Mestrado em Ciência da Literatura (Teoria Literária) na UFRJ. É Doutora também em Ciência da Literatura (Teoria Literária) pela mesma Universidade.

Em 2005 ministrou curso de extensão sobre texto televisivo na UFRJ.

É autora de três dezenas de livros (poesia/prosa), novelas de TV, teatro, roteirista de cinema. Tem obras publicadas em países como FrançaMéxicoColômbiaEstados Unidos e Portugal.

 

Tem vários poemas com temática lésbica. Foi ativista no Grupo Auê, no Rio de Janeiro entre 1979 e 1980, tendo chegado a coordenar um pré-EBHO nesta cidade. Participou do "I Concurso de Poesia Gay do Brasil", promovido pelo Grupo Gay da Bahia em 1982, com o poema "Teus Seios".




O Poeta Enquanto Coisa

www.secretasjuras.blogspot.com

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