sexta-feira, 11 de março de 2022

Coletânea Poetas Vivos

 


              O RETORNO DE BILLY NEGÃO

 

Billy Negão é uma garota

Sem juízo nenhum

Foi amiga do Cazuza, trampava na noite

Jogava seu charme para qualquer um

Mas nunca hesitava, puxava a navalha

Botava otário pra correr

Sob a lua de neon, o sangue escorria

Nas sarjetas do baixo Leblon

Billy Negão é um perigo

Uma bandida, um avião

Uma boneca vadia

Se vira sem nenhum tostão

Billy desfila na passarela

dos malandros lá da Lapa

Reza na igreja dos loucos

E toda noite vai dormir chapada

Mas não marca bobeira, desvia das balas

Não vacila com a milícia

Sai da mira, enrola um beque, dá uma bola

Embola reggae com embolada

Billy Negão não quer treta com ninguém

Mas também não diz amém

Pra pastor ou impostor

Descolada, não suporta parasita

Não dá trela pra fascista

Sai no braço se alguém trisca

Na escola da vida ela é passista

Chama exu e tranca-rua

Bebe pinga e risca à faca

Chupa charuto, não aguenta desaforo

Solta densa baforada

Faz um talho no babaca

Billy só quer viver em paz

Se é homem ou mulher

Que diferença faz?

Billy Negão é um perigo

Uma bandida, um avião

Uma boneca vadia

Se vira sem nenhum tostão

Billy Negão é uma flor

Cheia de dengo e de malícia

Não se entrega pra polícia

Só se entrega por amor

*****

Quiser ver e ouvir como este poema fica num ska suingado, com metaleira de responsa (trombone, trompete e sax), venha ver o show Buena Onda Reggae Club e Ademir Assunção na sexta-feira (11), às 21h, Sesc Avenida Paulista.

https://www.sescsp.org.br/programacao/buena-onda-reggae-club-e-ademir-assuncao/?fbclid=IwAR1nc9haFkS1TErexVLV6Kophb0utWSSexZ0mlMF90fmrRBp7MhgpIskfC8

 


 RECORTES


A tarde debruça
cálida sobre mim
e meus fantasmas

A noite dormita
e sonha no crepúsculo
as estrelas da manhã

O etéreo divaga
na madrugada risível
e chuvosa

Nalgum lugar
um grito esganiçado
desperta meu delírio

Dudu Galisa 
 





 

O POETA E OS TOMATES

Todos imaginam a vida do poeta
como algo agradável e nobre:
desfrutar dias e noites em versos,
preocupar-se com cigarras ou pássaros,
enquanto — silenciosamente — a guerra se instala
ou a inflação engole tomates.
Acreditam que o poeta subsista de sonhos
e devora suas próprias nuvens
para não sucumbir à fome.
Mas aqui está um espécime não espectral
pouco conhecedor das razões poéticas
e versado mais em tomates que métricas.
Contrariando românticos,
põe-se a teclar afundado em cálculos e prazos,
passa camisas, cozinha restos como ninguém,
e a última coisa que lhe bate à porta
seja — talvez — o poema,
porque os tomates são mais necessários
e seguem caros demais;
porque a poesia dorme em cama macia
enquanto o poeta entorta suas costas
sobre mortalha de madeira.
Mas lá fora acreditam no poeta mítico
a consumir cafés, cigarros, broas;
a observar calado pelas janelas o progresso.
Não sou um poeta, portanto.
Esse suspenso, claro, imaterial.
Sou próximo das calçadas.
Recolho as cortinas para que a luz não ofusque
e o expediente satisfaça o engenho,
porque é preciso correr contra as manhãs e noites;
porque é preciso alcançar os tomates tão caros
e pouco suculentos.
O que sobrar do homem ao final da semana
será da poesia.
Caberá a ela erguer das ruínas
horizonte que valha contemplação.

Angel Cabeza




 

"duração"

 

homens morrem no campo feito água de chuva

a partir disso todas as rotinas são a mesma

um homem começa a ler o jornal pela folha

de falecimentos ao lado dos classificados

para saber se perdeu mais um amigo no dia

para pedir à mulher que separe a sua camisa

branca um corte de tecido a imitar um lenço

umas calças de tergal e os únicos mocassins

agarra num terço e numa fotografia de gaveta

pára a meio do corredor maldizendo a chegada

dos jornais ao campo maldizendo as notícias

a galoparem tão mais velozes do que o campo

fecha a porta atrás dele e chora antes de ir

fungando como quem precisa adiar a tristeza

como quem precisa estar rijo e seco e pronto

o homem do campo lamenta a perda dos seus

sempre longe: o seu choro dura uma eternidade

atrás dos pés de café, atrás dos pés de limão.

 

Amanda Vital




 CRITÉRIOS DA SAUDADE

 

Há uma saudade feito lâmina

que, além da alma,

também dilacera o corpo,

escancarando dores desconhecidas.

Outra saudade divisora de sentidos

é aquela que se pendura, aleatória, muitas vezes

constrangida,

entre fios tênues de um olhar perdido

à procura dos já findos:

um alguém, um desejo, uma sede, um resquício.

Há aquelas bem mais urgentes,

necessárias, mas incoerentes,

nas ranhuras que se desenham - repentinas - entre as unhas

a demarcar terrenos improváveis ao desmantelo do coração.

Ainda suplicam saudades outras

- bem distantes -

teimosas, itinerantes, quase peregrinas,

que se vão como em fases,

que ora trazem de volta alguma de suas faces,

ora fogem sorrateiras nas lonjuras escuras do inconsciente.

De todas elas

tenho afeição primeira

por uma saudade ainda sem classificação:

gosto mesmo da saudade que se derrama

entre uma de mim que já fui

e aquela que sonhei.

 

Nic Cardeal

11.03.2022

📸imagem do Pinterest:

 




 

(Do livro TESTAMENTO DE VENTO)

 

FRONTEIRA

 

Na sala de espera do Centro de Doença

de Alzheimer e Parkinson estávamos eu,

José, de 58 anos, vítima de esquizofrenia

e distúrbios neurológicos; dona Olivia, 75 anos,

parksoniana e Pedro, 48 anos, refém do Alzheimer.

Sabíamos um do outro, mas não nos olhávamos,

como se fôssemos irmãos de uma seita secreta,

o silêncio e o alheamento era nosso código

de comunicação. Não havia o que falar.

Palavras são lâminas, por natureza,

se não, domadas.

O olhar comum de desassossego era uma carta náutica

para velhos marinheiros do mar alto,

que pouco se viam, mas que se reconheciam no

vastíssimo oceano da dor.

Nossos acompanhantes tricotavam experiências

e as últimas cenas da novela da 9h.

Alguns de nós, acompanhados, sabíamos de nossa

condição de fronteiriços,

tínhamos um pé na lucidez e o outro

no território do delírio.

O coração se aventurava em acrobacias

nos abismos, independente de nosso pânico.

De repente, uma réstia de sol

atravessou o vidro da janela

e acendeu a esperança que guardamos

escondida.

José, dona Olívia, Pedro e eu

rimos, cúmplices, ninguém mais percebeu.

A vida, por um momento, desabrochou exuberante e sã

naquela burocrática sala de espera.

É assim que, em nós, de vez em quando, independente

da hora e do lugar,

irrompe no maciço da escuridão a improvável

flor da manhã.

 

Fernando Leite Fernandes




 desconfiguração do corpo

 

os estilhaços do corpo

estão espalhados

nas cidades

:

pernas aqui

braços ali

cabeças acolá

na total desconfiguração

:

- cabeça/tronco/membros

as cidades estão entupidas

de fragmentos de populações

destroçadas em desespero

a crueldade é tanta

que dificilmente em qualquer cidade

se encontra um ser humano por inteiro


memorial dos ossos

 

espora uma palavra amolada

dessas que cortam a carne

no primeiro toque

 

espora

em meu sentido rock

não um mero truque

no pulsar da língua

que a tua pele lambe

quando saliva aflora

 

espora

em meu cavalo branco

o simbolismo aceso

todo dia é dia de São Jorge

Jorge Luis Borges

num plural latino

escavar a terra em busca da palavra

quando o nervo implora

 

espora

temporal dos músculos

memorial dos ossos

nesse tempo bruto

tudo no que posso

 

                                                          Artur Gomes

O Poeta Enquanto Coisa

Editora Penalux - 2020

www.secretasjuras.blogspot.com

 

poema 23

 

a língua hoje passeia

pelos martírios de florbela

em tudo que ela não disse

ou mesmo exposto não revela

pelas janelas do corpo

por todas dores prazeres

no que ficou por dizeres

no silêncio quando cala

por tudo que ainda não cabe

na sensualidade da fala

 

Artur Fulinaíma

o homem com a flor na boca

www.arturfulinaima.blogspot.com

 

no espelho da raridade

cheirei as flores do mal

pensando ser bem-me-quer

um dia sou paulo leminski

no outro : sou charles Baudelaire

 

Federico Baudelaire








não vou

guardar os sábados

em nome de jesus

 

e me deixar

crucificada numa cruz

que só me causa dor

 

aos sábados

eu pratico a arte

de fazer amor


bruna

é quando a bruma

ainda espuma

espora e sal

em branca areia

eu encantada

       ela sereia

 

 

Federika Lispector

www.suorecio.blogspot.com 

 



roberta agora

só se for cainelli

bruna só se for pelleto

 

vestido

 pode ser a pele

que encobre

a nudez do esqueleto

 

o beijo agora

só se for ao vivo

e-mail só se for inteiro

 

fantasia

só se for de tanga

camila só se for pitanga

 

carnaval

a gente transa

em fevereiro

 

Rúbia Querubim

www.personasarturianas.blogspot.com



                                                  tem urubus no telhado

a carne seca é servida

uma escorpião encravado

na sua própria ferida

não escapa

só escapo pela porta de saída

 

Torquato Neto

 


sou o mestre sala

não me roube a fala

nem a anarquia

que não sou político

carregador de mala

 

e que zeus me livre

dessa corja insana

que arrombou brasil

quero que se foda

a putaria toda

e o genocida

desça a rampa que subiu

 

Federico DuBoi

www.fulinaimargem.blogspot.com




 

sempre nua

bem comida bem amada

deito de bunda pra lua

toda nudez

não será castigada

 

Gigi Mocidade

www.porradalirica.blogspot.com




Artur Gomes

EntreVistas 

www.arturgumes.blogspot.com

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