DESTINO
para Ivan Junqueira
O morto não mora onde o
corpo se expõe
no último traje.
Não cessa ali – sob o
assédio dos olhos na caixa fria.
Jaz, na derradeira
vitrine do rito,
apenas a casca oca
(que seus sonhos e
medos já não guarda).
Inútil pranteá-lo em flores
e confissões
na masmorra de mármore.
Sob a lápide, apenas
pele e destroços.
Sua dor volátil migrou
para o invisível, rumo ao sol.
O morto não mora no
ossário,
na urna de cinzas
prometida ao mar,
nos tesouros que
guardava,
no quarto que o
aguardava.
Não cessa no tiro, no
corte,
ou quando, amorosa, a
morte o elege
no sossego da noite.
O morto não morre.
REMORSO
Onde
enterrar os beijos que não dei e quis?
Que
luto lavará a dor do amor que não fiz?
HERANÇA
Existem os asilos e o
exílio do velho,
hóspede dos herdeiros.
Prostrado na poltrona,
macula a estética da sala:
fraldas por trocar,
manias e silêncio.
O velho e seu alto
custo – barganhado,
sua língua trôpega, sua
dentadura afogada no copo.
Para que serve o velho
e seus passos débeis,
sua fala fraturada,
seus dias sem amanhã?
Para que serve o velho
e sua história esmaecida,
ante os dias férteis
dos entes que amou?
O velho e a surdez da
casa
(a eutanásia
homeopática da parentalha).
Para que servem os
filhos do velho?
CURA
Que
a arte me desarrume.
Densa,
me desarranje.
Assombre
o meu déjà vu,
Alcance-me
aonde não fui, me enxergue o que não vi.
Minha
face ao tapa do belo,
a
alma ao chicote – gemido indolor.
Arte:
espinho para as zonas mortas – amor.
O
sol árduo da revelação,
sombras
saltando de baús – salvação.
Do livro
PARA FABRICAR ASAS (Ibis Libris)
MORTE EM VIDA
O amor morre todo dia.
Começa a morrer broto
ainda,
na parição da terra que
o enterrará.
No olhar primeiro
começa a morrer,
no roçar dos rostos,
na umidade das mãos
entrelaçadas,
o mofo do fim.
Sob a fervura da
alegria - águas frias.
Nasce se despedindo, o
amor,
na ascensão do querer.
Morre, de transbordar e
carecer.
No gemido do gozo,
a dor inaudível do
padecer.
O amor morre todo dia,
na comunhão ácida das
salivas,
no silêncio eloquente
dos corpos,
na saturação dos sons,
na separação das
sílabas.
O
TEMPO DO AMOR
Não
tenho âncora no passado,
nem
como pão requentado na mesa do amanhã.
As
fotografias não doem.
Esvaziadas
todas as palavras prometidas ao eterno.
O
tempo lava os ponteiros dos segundos,
atualiza
dores, desejos, e desbota mágoas.
Aportam-se
e partem tantos personagens
no
cais do amor!
Ninguém
preso aos meus passos,
sob
meus pés, pisoteando meu prumo.
Passado
não tem fôlego para seguir alegria:
É
terra dos mortos.
SOBRE A DOR
para
José Inácio Vieira de Melo
A noite comeu, de
repente,
uns pedaços do meu
caminho.
De forma que tremi as
pernas e travei os passos.
Depois, jogou em mim um
barro bom de fé,
que tapou os buracos
das encruzilhadas.
Acordei novo, surpreso
de sol,
feito quem volta da
morte
e pede para ser
beliscado, de tão vivo!
A noite tem dentes
pontiagudos,
mas traz na saliva uma
luz
que sutura qualquer
peito esfarrapado.
Nasceu para maturar o coração:
não fere em vão.
A noite não dói tanto
depois que passa,
só na hora que o minuto
(de eterno) asfixia e mata.
Quando sossega de
espernear seu absurdo,
Deixa, na nossa pele,
vigorosas estrelas,
nutridas de Deus.
Não é má, nem morte,
nem sina:
É mar, marcha – ensina.
ENSAIO
SOBRE AS MANHÃS
A
porta do fim dá num beco inusitado,
repleto
de recomeços.
Ninguém
descobre o frescor do chão desabitado,
enquanto
o medo jura seus infernos!
Mas
se a vida chama e o sujeito mete a cara,
não
há terror que o aterre em jardim morto.
Movem-se
as horas de infinito e novidades,
que
não cabem nas compotas das certezas.
O
vento descabela de improviso as folhas,
forrando
de beleza o caminhar,
(e
há dor na rebentação dos ramos).
Os
dias são bichos indomados,
sem
nome e classificação:
ninguém
se socorre do sofrer por adivinhação,
nem
pondo tranca nos abraços.
A
vida entra em qualquer gruta,
e
cata o ente debaixo de pedra,
quando
cisma de ensinar pelo padecer.
Também
o sol invade o olho agoniado,
devolve
o infeliz ao sonho,
e
transforma em liquidez seu sangue coagulado.
O
certo é que nunca se sabe o que a manhã assina:
e
a sorte é o não saber!
ALMAS
para Rosane
No teu abraço me
reencontro com o mais antigo de mim:
o que perdi na primeira
vida – ainda verme,
o colo da mãe primeva,
a parição do espírito
no útero da caverna,
a paz esquecida no
silêncio da Terra,
o que existia antes de
Deus.
ETERNO
Pronuncio
a palavra mãe.
A
boca prenhe de sentidos insondáveis,
que
a língua não traduz:
nenhum
verbo nascido ascende a sua luz.
Dentro
da foto, a ausência plena se acende,
desaparição
presente no peito apaziguado.
Qualquer
recanto da vida é mãe.
Tudo
nasce e se planta e persiste,
porque
ela existe, além da lápide.
Sua
memória sem estio me ensina a esperar.
Olha
com meus olhos, me explica o desapego.
Moradora
de mim, pisa com meus pés
os
caminhos do sem fim.
Irriga
meus sonhos, espanta meus pesadelos.
Hoje
nenhum corpo nos separa!
Mãe,
fluxo de minhas veias, ar.
Vento
que me levanta e faz planar.
Carmen Moreno
Do
livro SOBRE O AMOR E OUTRAS TRAIÇÕES (Patuá)
CARMEN
MORENO Poeta, contista e romancista carioca, bacharel em Artes
Cênicas e licenciada em Educação Artística (UNIRIO), lecionou na área de sua
formação. Membro Titular do PEN Clube do Brasil. Publicou: Diário de Luas
(romance), Rocco; Sutilezas do Grito (contos), Rocco; O Primeiro Crime (romance
policial), Coleção “Elas São de Morte”, Denise Assis (Org.), Rocco; O Estranho
(contos), Five Star; De Cama e Cortes (poesia), UERJ; Loja de Amores Usados
(poesia), Multifoco; Para Fabricar Asas (poesia), Ibis Libris, e Sobre o Amor e
Outras Traições (poesia), Patuá. Integra mais de 40 coletâneas, nacionais e
internacionais, com poemas publicados em Cuba, Argentina e Portugal. Algumas obras:
Antologia da Nova Poesia Brasileira, Olga Savary (Org.), Hipocampo; Mais 30
Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira (contos), Luiz Ruffato
(Org.), Record; As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira, Rubens Jardim
(Org.), Arribaçã. Sua obra foi tema de dissertação de Mestrado pela
Universidade Federal do Rio Grande/RS. Entre as diversas premiações,
destacam-se: Prêmio Casa da América Latina: Concurso de Contos Guimarães Rosa,
Rádio França Internacional/Paris; Bolsa de Incentivo ao Escritor Brasileiro
(poesia), MINC/BN, e Prêmio de Desenvolvimento de Roteiros Cinematográficos
(MINC/ Secretaria do Audiovisual)
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