sábado, 9 de abril de 2022

Coletânea Poetas Vivos

 


DESTINO

para Ivan Junqueira

  

O morto não mora onde o corpo se expõe

no último traje.

Não cessa ali – sob o assédio dos olhos na caixa fria.

Jaz, na derradeira vitrine do rito,

apenas a casca oca

(que seus sonhos e medos já não guarda).

Inútil pranteá-lo em flores e confissões

na masmorra de mármore.

Sob a lápide, apenas pele e destroços.

Sua dor volátil migrou para o invisível, rumo ao sol.

O morto não mora no ossário,

na urna de cinzas prometida ao mar,

nos tesouros que guardava,

no quarto que o aguardava.

Não cessa no tiro, no corte,

ou quando, amorosa, a morte o elege

no sossego da noite.

O morto não morre.

 

REMORSO

 

Onde enterrar os beijos que não dei e quis?

Que luto lavará a dor do amor que não fiz?

 

HERANÇA

 

Existem os asilos e o exílio do velho,

hóspede dos herdeiros.

Prostrado na poltrona, macula a estética da sala:

fraldas por trocar, manias e silêncio.

O velho e seu alto custo – barganhado,

sua língua trôpega, sua dentadura afogada no copo.

Para que serve o velho e seus passos débeis,

sua fala fraturada, seus dias sem amanhã?

Para que serve o velho e sua história esmaecida,

ante os dias férteis dos entes que amou?

O velho e a surdez da casa

(a eutanásia homeopática da parentalha).

Para que servem os filhos do velho?

 

CURA

 

Que a arte me desarrume.

Densa, me desarranje.

Assombre o meu déjà vu,

Alcance-me aonde não fui, me enxergue o que não vi.

Minha face ao tapa do belo,

a alma ao chicote – gemido indolor.

Arte: espinho para as zonas mortas – amor.

O sol árduo da revelação,

sombras saltando de baús – salvação.

 

Do livro PARA FABRICAR ASAS (Ibis Libris)

 

MORTE EM VIDA

 

O amor morre todo dia.

Começa a morrer broto ainda,

na parição da terra que o enterrará.

No olhar primeiro começa a morrer,

no roçar dos rostos,

na umidade das mãos entrelaçadas,

o mofo do fim.

Sob a fervura da alegria - águas frias.

Nasce se despedindo, o amor,

na ascensão do querer.

Morre, de transbordar e carecer.

No gemido do gozo,

a dor inaudível do padecer.

O amor morre todo dia,

na comunhão ácida das salivas,

no silêncio eloquente dos corpos,

na saturação dos sons,

na separação das sílabas. 

 

O TEMPO DO AMOR

 

Não tenho âncora no passado,

nem como pão requentado na mesa do amanhã.

As fotografias não doem.

Esvaziadas todas as palavras prometidas ao eterno.

O tempo lava os ponteiros dos segundos,

atualiza dores, desejos, e desbota mágoas.

Aportam-se e partem tantos personagens

no cais do amor!

Ninguém preso aos meus passos,

sob meus pés, pisoteando meu prumo.

Passado não tem fôlego para seguir alegria:

É terra dos mortos.

 

SOBRE A DOR

para José Inácio Vieira de Melo

 

A noite comeu, de repente,

uns pedaços do meu caminho.

De forma que tremi as pernas e travei os passos.

Depois, jogou em mim um barro bom de fé,

que tapou os buracos das encruzilhadas.

Acordei novo, surpreso de sol,

feito quem volta da morte

e pede para ser beliscado, de tão vivo!

A noite tem dentes pontiagudos,

mas traz na saliva uma luz

que sutura qualquer peito esfarrapado.

Nasceu para maturar o coração: não fere em vão.

A noite não dói tanto depois que passa,

só na hora que o minuto (de eterno) asfixia e mata.

Quando sossega de espernear seu absurdo,

Deixa, na nossa pele, vigorosas estrelas,

nutridas de Deus.

Não é má, nem morte, nem sina:

É mar, marcha – ensina.

 

 

ENSAIO SOBRE AS MANHÃS

 

A porta do fim dá num beco inusitado,

repleto de recomeços.

Ninguém descobre o frescor do chão desabitado,

enquanto o medo jura seus infernos!

Mas se a vida chama e o sujeito mete a cara,

não há terror que o aterre em jardim morto.

Movem-se as horas de infinito e novidades,

que não cabem nas compotas das certezas.

O vento descabela de improviso as folhas,

forrando de beleza o caminhar,

(e há dor na rebentação dos ramos).

Os dias são bichos indomados,

sem nome e classificação:

ninguém se socorre do sofrer por adivinhação,

nem pondo tranca nos abraços.

A vida entra em qualquer gruta,

e cata o ente debaixo de pedra,

quando cisma de ensinar pelo padecer.

Também o sol invade o olho agoniado,

devolve o infeliz ao sonho,

e transforma em liquidez seu sangue coagulado.

O certo é que nunca se sabe o que a manhã assina:

e a sorte é o não saber!

 

 

ALMAS

para Rosane


No teu abraço me reencontro com o mais antigo de mim:

o que perdi na primeira vida – ainda verme,

o colo da mãe primeva,

a parição do espírito no útero da caverna,

a paz esquecida no silêncio da Terra,

o que existia antes de Deus.

 

                                                                                     

 

ETERNO

 

Pronuncio a palavra mãe.

A boca prenhe de sentidos insondáveis,

que a língua não traduz:

nenhum verbo nascido ascende a sua luz.

Dentro da foto, a ausência plena se acende,

desaparição presente no peito apaziguado.

Qualquer recanto da vida é mãe.

Tudo nasce e se planta e persiste,

porque ela existe, além da lápide.

Sua memória sem estio me ensina a esperar.

Olha com meus olhos, me explica o desapego.

Moradora de mim, pisa com meus pés

os caminhos do sem fim.

Irriga meus sonhos, espanta meus pesadelos.

Hoje nenhum corpo nos separa!

Mãe, fluxo de minhas veias, ar.

Vento que me levanta e faz planar.

 

Carmen Moreno

Do livro SOBRE O AMOR E OUTRAS TRAIÇÕES (Patuá)

 

CARMEN MORENO Poeta, contista e romancista carioca, bacharel em Artes Cênicas e licenciada em Educação Artística (UNIRIO), lecionou na área de sua formação. Membro Titular do PEN Clube do Brasil. Publicou: Diário de Luas (romance), Rocco; Sutilezas do Grito (contos), Rocco; O Primeiro Crime (romance policial), Coleção “Elas São de Morte”, Denise Assis (Org.), Rocco; O Estranho (contos), Five Star; De Cama e Cortes (poesia), UERJ; Loja de Amores Usados (poesia), Multifoco; Para Fabricar Asas (poesia), Ibis Libris, e Sobre o Amor e Outras Traições (poesia), Patuá. Integra mais de 40 coletâneas, nacionais e internacionais, com poemas publicados em Cuba, Argentina e Portugal. Algumas obras: Antologia da Nova Poesia Brasileira, Olga Savary (Org.), Hipocampo; Mais 30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira (contos), Luiz Ruffato (Org.), Record; As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira, Rubens Jardim (Org.), Arribaçã. Sua obra foi tema de dissertação de Mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande/RS. Entre as diversas premiações, destacam-se: Prêmio Casa da América Latina: Concurso de Contos Guimarães Rosa, Rádio França Internacional/Paris; Bolsa de Incentivo ao Escritor Brasileiro (poesia), MINC/BN, e Prêmio de Desenvolvimento de Roteiros Cinematográficos (MINC/ Secretaria do Audiovisual)



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