domingo, 24 de abril de 2022

Coletânea Poetas Vivos

 


 Recortes Pelas Margens do Rio Pomba

fragmentos

 

A Igreja

Ao vê-la, espelho

nem crê que a água

se revela em tudo

que faz parte dela.

 

O Pensador

Ele pensa

que pensa o mundo,

no entanto nem sonha

o que o mundo pensa.

 

O Calçadão

A rua aprende

que a troca

é a maior lição

que a vida ensina.

 

A Praça

Onde encontros se dão

para negócios, namoros;

onde os sonhos se vão

saídos do mesmo choro.

 

A Cidade

Um recorte da cidade

é como se recorde

cada foco de sol,

de luz e claridade.

 

Pássaros

Um pássaro, dois, cem

bastam para o revoo

de mil ideias que nascem

das asas deste dia?

 

A Fábrica

Era uma vez uma indústria

de que nasceram

indústrias,

jardins, crianças, piscinas,

varandas, ruas, tratores...

 

Recanto

Ainda não seria assim

o melhor canto do mundo

se não tivesse uma voz

para lhe dar  tom de canto.

 

As Fiandeiras

Mãos já foram máquinas

tecendo novelos,

como no elo

mágico de Ulisses.

 

O Paço

Ali se guardam

atos muitas vezes

repetidos

que se atam

a passos tantas vezes

expeditos.

 

A Curva do Rio

A curva do rio

imita a vida.

suba e veja :

é paisagem ainda.

 

A Ponte

Eternamente unir,

levar sofregamente,

nitidamente, postar-se,

fugir avidamente.

 

 

Joaquim Branco Ribeiro Filho

Do livro Textuagens – poemas à margem do rio Pomba

Cataguazes-MG – 2014


ESCALAFOBÉTICA

 

Sou barco inseguro

Deste planalto sem mar

Onde fico a reparar

Na escuridão do museu

Bêbados ambulantes

Quixotes de Cervantes

Assim como eu:

Falsa ninfa estacionada

Em pit, stop do nada

Sob o céu bordô

De uma cidade sem ética

Que nesta noite nos reduz,

Meu inconstante amor,

A príncipe esfarrapado e

Princesa escalafobética

 

Noélia Ribeiro

Do livro Escalafobética

Vidráguas – PortoAlegre-RS – 2015




'Diálogos poéticos' com Hilda Hilst:

 

01)

CHAMADO

(por Nic Cardeal, releitura do poema "Chamamento II - Dez Chamamentos ao Amigo", Hilda Hilst)

 

Eu ouvi teu chamado

tão mudo

tão vasto

eco transverso

na voz que ecoa intensa

em minha armadura.

Não me interrogues

nem me duvides

o tempo já foi

tão breve

mas tu ficaste

vasta criatura

gravada em minhas ranhuras.

Não me perguntes mais.

Nada direi.

O tempo é terno

- eterno -

somos nós

a volátil presença mútua.

Mas eu te amo

se me amas por verdadeiro

no teu passo

- descompasso

qu'inda me espera

silenciosa e muda.

*

02)

NOS TEUS LONGES

(por Nic Cardeal, releitura do poema "Elegia n° 5 (*) - Cinco Elegias", Hilda Hilst)

 

Se o tempo ainda dura

e te fazes continente

em minha ilha,

onde águas profundas

afundam navios de angústias

em meus rasos já tão escassos,

nenhuma superfície me salva,

sequer na tua altura hei de saltar.

Guarda teu verde,

teu sol,

teu amor,

para além da tarde tranquila,

pois 'inda brilha

"(ainda que obscura)" (*)

a tua flor.

Não,

nenhuma estrela me salva,

sequer uma estrela-do-mar

ou aquela d'alva.

As minhas coisas espalhadas,

os meus cadernos escritos,

prescritos,

nenhum sonho descrito:

- a tua lei áurea

libertando tão tarde

a minha dor.

Tu que não me conheces

nem para pior,

nem para melhor,

mal sabes a cor

do que te tenho como amor.

Não fiz retrato teu

em meu altar,

sequer guardei teus roteiros

em meu pobre navegar de mares raros.

Não sei por onde passaste,

por onde pisaste:

- nada sei de ti

além do meu te querer.

Ainda me vês singular

aonde te atravesso

com meus plurais.

Planuras antigas

caindo em mim

de tuas alturas.

Rogo-te:

- Esquece muito de mim

em tua viagem ao fim.

*

03)

DA TERRA

(por Nic Cardeal, releitura do "Poema n° 4 - Do Amor Contente e Muito Descontente", Hilda Hilst)

 

Depois de tudo,

um esforço vão

no destempero de viver

aos avessos?

Não creio.

Há de haver algum outro meio

de se viver sem solavancos,

de apartar minhas estacas,

de segurar a alma intacta.

E o meu medo da terra

caída sobre o dorso

do que antes fora

minha vida?

Não creio

que do pó vindo

volverei ao pó dos findos.

Algo há que me fazer refeita,

'inda que de mim desfeita

sobre um sopro voejando ao largo

n'outros vastos

algures mais amplos

infindáveis relâmpagos

sem me perder

de mim solidão rendida.

Que a terra não me faça promessas

nunca cumpridas,

antes me guarde intacta

na semente outra vez parida.

*

 

04)

'DO ESCONDIDO DAS GENTES'

(por Nic Cardeal, releitura do poema "Elegia n° 5' (*) - Cinco Elegias", Hilda Hilst)

 

mim sou alguém

do nada sou ninguém.

Quem me devora depois do além,

se me devolvem o prato vazio

no frio de um vintém?

Nas entranhas do corpo

jaz o verbo solto

porque sou o poeta

e também o louco.

Nenhum profeta fez de mim seu porto,

nem o político quis em mim o palanque do seu festim.

De mim sou parte do povo:

- sou do povo -

- sou o povo -

nas beiras do meu sangue

nem a prata nem o ouro,

guardo folhas escritas

no cofre do meu tesouro.

Não sou banquete,

nem guardo espelho.

Espalho sutilezas,

sou poeta da linha,

do laço,

do traço

tão laico.

No olhar das águas do lago

eu vejo ao lado

a fome do homem

e a sede que o consome.

Não grito teu nome.

Nem ousas ouvir meu silêncio.

Tenho na alma a cicatriz

que sangra teu sentimento

a sangue frio

no calor do teu pranto.

Ainda te chamo

em louca poesia,

porque és do povo,

és a voz consoante

- tão vogal -

dormente no povo.

- Acorda teu verbo aceso em mim.

Olha na janela aberta

e não barganhes tua vontade,

porque arde já tarde

teu verbo em mim.

"Porque o poeta é irmão

do escondido das gentes" (*).

Eu?

Não sou o poeta.

Sou mais um irmão

das tuas passíveis (impossíveis) fomes de mim.

 

(Nic Cardeal)

(poemas publicados no Projeto "Clandestina Plural - Agosto/2018, da "Revista Senarium Plural", ed. Lunna Guedes e Marco Antonio Guedes)


vinte e cinco do um do primeiro ano de nossa anunciada hecatombe

 

em lugar da prisão

o dejeto presidente

da empresa assassina

volta ao local do crime

escudado pelo presidente

da nação enlameada

 

lado a lado

 

empertigado e lustroso, aquele

como convém a um alto executivo

 

colete de caçador amarfanhado, este

como convém ao mais alto dignitário

perdido na floresta de trapalhadas

de repúdios federativos do brasil

 

sobrevoam

a lama, a lama, a lama...

após os lucros retirados

nesta lama/rejeito devolvido

em conluio, derramada

sobre os rejeitos humanos

acusados de prejuízo

 

sobrevoam e calam

pelo tuiter, prometem

mudam o discurso

mentem

 

a lama que tudo oculta

está longe de ser metáfora

lama língua linguagem

silêncio que diz

dos corpos sem nome

mortos, que o protocolo

chama de (?) desaparecidos

 

os que não morreram

ficam sem nada

são nada

servem apenas de espetáculo

motivo/lenitivo

para a caridade de ocasião

 

amanhã, todos

mortos e mortos vivos

não passarão de meras estatísticas

 

brumadinho

bruma indício

do fracasso

da ex-terra brasílis

e de sua falência humana

 

Dalila Teles Veras

Do livro tempo em fúria

Alpharrabio Edições – Santo André-SP – 2019




                                                               brumadinho

 

tem muita lama

no meio do caminho

 

Artur Gomes

www.fulinaimagens.blogspot.com




Cerro da Pólvora

 

           ando

na verdade

caminhando pela infância

 

brincando de subir em árvores e

descobrir o horizonte um

pouco mais longe

 

nas horas vastas

escrevo versos

 

nada que seja tão mais

importante que carregar caixotes

na cabeça e deseja-los em algum

buraco de origem não sabida

 

Lau Siqueira

Do livro O Inventário do pêssego

Cas Verde- Porto Alegre-RS – 2020




 Estio

 

Quando a palavra

gera na boca

[sobre o solo

rachado da língua]

o cascalho do silêncio,

as engrenagens

de um tempo de estio

estrangulam

metáforas e risos

entredentes.

 

Edelson Nagues

Do livro Palavras para estrangular silêncios - Editora Patuá – São Paulo-SP – 2019




Fulinaíma MultiProjetos

www.centrodeartefulinaima.blogspot.com

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