fragmentos
A Igreja
Ao vê-la, espelho
nem crê que a água
se revela em tudo
que faz parte dela.
O
Pensador
Ele pensa
que pensa o mundo,
no entanto nem sonha
o que o mundo pensa.
O
Calçadão
A rua aprende
que a troca
é a maior lição
que a vida ensina.
A
Praça
Onde encontros se dão
para negócios, namoros;
onde os sonhos se vão
saídos do mesmo choro.
A
Cidade
Um recorte da cidade
é como se recorde
cada foco de sol,
de luz e claridade.
Pássaros
Um pássaro, dois, cem
bastam para o revoo
de mil ideias que nascem
das asas deste dia?
A
Fábrica
Era uma vez uma indústria
de que nasceram
indústrias,
jardins, crianças, piscinas,
varandas, ruas, tratores...
Recanto
Ainda não seria assim
o melhor canto do mundo
se não tivesse uma voz
para lhe dar tom de canto.
As
Fiandeiras
Mãos já foram máquinas
tecendo novelos,
como no elo
mágico de Ulisses.
O
Paço
Ali se guardam
atos muitas vezes
repetidos
que se atam
a passos tantas vezes
expeditos.
A
Curva do Rio
A curva do rio
imita a vida.
suba e veja :
é paisagem ainda.
A
Ponte
Eternamente unir,
levar sofregamente,
nitidamente, postar-se,
fugir avidamente.
Joaquim
Branco Ribeiro Filho
Do livro Textuagens – poemas à margem do rio Pomba
Cataguazes-MG – 2014
ESCALAFOBÉTICA
Sou barco inseguro
Deste planalto sem mar
Onde fico a reparar
Na escuridão do museu
Bêbados ambulantes
Quixotes de Cervantes
Assim como eu:
Falsa ninfa estacionada
Em pit, stop do nada
Sob o céu bordô
De uma cidade sem ética
Que nesta noite nos reduz,
Meu inconstante amor,
A príncipe esfarrapado e
Princesa escalafobética
Noélia
Ribeiro
Do livro Escalafobética
Vidráguas – PortoAlegre-RS –
2015
01)
CHAMADO
(por Nic Cardeal, releitura do poema
"Chamamento II - Dez Chamamentos ao Amigo", Hilda Hilst)
Eu ouvi teu chamado
tão mudo
tão vasto
eco transverso
na voz que ecoa intensa
em minha armadura.
Não me interrogues
nem me duvides
o tempo já foi
tão breve
mas tu ficaste
vasta criatura
gravada em minhas ranhuras.
Não me perguntes mais.
Nada direi.
O tempo é terno
- eterno -
somos nós
a volátil presença mútua.
Mas eu te amo
se me amas por verdadeiro
no teu passo
- descompasso
qu'inda me espera
silenciosa e muda.
*
02)
NOS TEUS LONGES
(por Nic Cardeal, releitura do poema
"Elegia n° 5 (*) - Cinco Elegias", Hilda Hilst)
Se o tempo ainda dura
e te fazes continente
em minha ilha,
onde águas profundas
afundam navios de angústias
em meus rasos já tão escassos,
nenhuma superfície me salva,
sequer na tua altura hei de saltar.
Guarda teu verde,
teu sol,
teu amor,
para além da tarde tranquila,
pois 'inda brilha
"(ainda que obscura)" (*)
a tua flor.
Não,
nenhuma estrela me salva,
sequer uma estrela-do-mar
ou aquela d'alva.
As minhas coisas espalhadas,
os meus cadernos escritos,
prescritos,
nenhum sonho descrito:
- a tua lei áurea
libertando tão tarde
a minha dor.
Tu que não me conheces
nem para pior,
nem para melhor,
mal sabes a cor
do que te tenho como amor.
Não fiz retrato teu
em meu altar,
sequer guardei teus roteiros
em meu pobre navegar de mares raros.
Não sei por onde passaste,
por onde pisaste:
- nada sei de ti
além do meu te querer.
Ainda me vês singular
aonde te atravesso
com meus plurais.
Planuras antigas
caindo em mim
de tuas alturas.
Rogo-te:
- Esquece muito de mim
em tua viagem ao fim.
*
03)
DA TERRA
(por Nic Cardeal, releitura do
"Poema n° 4 - Do Amor Contente e Muito Descontente", Hilda Hilst)
Depois de tudo,
um esforço vão
no destempero de viver
aos avessos?
Não creio.
Há de haver algum outro meio
de se viver sem solavancos,
de apartar minhas estacas,
de segurar a alma intacta.
E o meu medo da terra
caída sobre o dorso
do que antes fora
minha vida?
Não creio
que do pó vindo
volverei ao pó dos findos.
Algo há que me fazer refeita,
'inda que de mim desfeita
sobre um sopro voejando ao largo
n'outros vastos
algures mais amplos
infindáveis relâmpagos
sem me perder
de mim solidão rendida.
Que a terra não me faça promessas
nunca cumpridas,
antes me guarde intacta
na semente outra vez parida.
*
04)
'DO ESCONDIDO DAS GENTES'
(por Nic Cardeal, releitura do poema
"Elegia n° 5' (*) - Cinco Elegias", Hilda Hilst)
mim sou alguém
do nada sou ninguém.
Quem me devora depois do além,
se me devolvem o prato vazio
no frio de um vintém?
Nas entranhas do corpo
jaz o verbo solto
porque sou o poeta
e também o louco.
Nenhum profeta fez de mim seu porto,
nem o político quis em mim o palanque
do seu festim.
De mim sou parte do povo:
- sou do povo -
- sou o povo -
nas beiras do meu sangue
nem a prata nem o ouro,
guardo folhas escritas
no cofre do meu tesouro.
Não sou banquete,
nem guardo espelho.
Espalho sutilezas,
sou poeta da linha,
do laço,
do traço
tão laico.
No olhar das águas do lago
eu vejo ao lado
a fome do homem
e a sede que o consome.
Não grito teu nome.
Nem ousas ouvir meu silêncio.
Tenho na alma a cicatriz
que sangra teu sentimento
a sangue frio
no calor do teu pranto.
Ainda te chamo
em louca poesia,
porque és do povo,
és a voz consoante
- tão vogal -
dormente no povo.
- Acorda teu verbo aceso em mim.
Olha na janela aberta
e não barganhes tua vontade,
porque arde já tarde
teu verbo em mim.
"Porque o poeta é irmão
do escondido das gentes" (*).
Eu?
Não sou o poeta.
Sou mais um irmão
das tuas passíveis (impossíveis)
fomes de mim.
(Nic
Cardeal)
(poemas publicados no Projeto "Clandestina Plural - Agosto/2018, da "Revista Senarium Plural", ed.
Lunna Guedes e Marco Antonio Guedes)
vinte e cinco do um do primeiro ano de nossa anunciada hecatombe
em lugar da prisão
o dejeto presidente
da empresa assassina
volta ao local do crime
escudado pelo presidente
da nação enlameada
lado a lado
empertigado e lustroso, aquele
como convém a um alto executivo
colete de caçador amarfanhado, este
como convém ao mais alto dignitário
perdido na floresta de trapalhadas
de repúdios federativos do brasil
sobrevoam
a lama, a lama, a lama...
após os lucros retirados
nesta lama/rejeito devolvido
em conluio, derramada
sobre os rejeitos humanos
acusados de prejuízo
sobrevoam e calam
pelo tuiter, prometem
mudam o discurso
mentem
a lama que tudo oculta
está longe de ser metáfora
lama língua linguagem
silêncio que diz
dos corpos sem nome
mortos, que o protocolo
chama de (?) desaparecidos
os que não morreram
ficam sem nada
são nada
servem apenas de espetáculo
motivo/lenitivo
para a caridade de ocasião
amanhã, todos
mortos e mortos vivos
não passarão de meras estatísticas
brumadinho
bruma indício
do fracasso
da ex-terra brasílis
e de sua falência humana
Dalila Teles Veras
Do livro tempo em fúria
Alpharrabio Edições – Santo André-SP –
2019
brumadinho
tem muita lama
no meio do caminho
Artur Gomes
www.fulinaimagens.blogspot.com
Cerro da Pólvora
ando
na
verdade
caminhando
pela infância
brincando de subir em árvores e
descobrir o horizonte um
pouco mais longe
nas horas vastas
escrevo versos
nada que seja tão mais
importante que carregar caixotes
na cabeça e deseja-los em algum
buraco de origem não sabida
Lau Siqueira
Do livro O Inventário do pêssego
Cas Verde- Porto Alegre-RS – 2020
Estio
Quando a palavra
gera na boca
[sobre o solo
rachado da língua]
o cascalho do silêncio,
as engrenagens
de um tempo de estio
estrangulam
metáforas e risos
entredentes.
Edelson Nagues
Do livro Palavras para estrangular silêncios - Editora Patuá – São Paulo-SP –
2019
Fulinaíma MultiProjetos
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