terça-feira, 19 de abril de 2022

Coletânea Poetas Vivos - Paulo Leminski

 


 A lua no cinema

 

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

 

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

 

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

 

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!

 

A Vida é as vacas

Que você coloca no rio

Para atrair as piranhas

Enquanto a  boiada passa

 

Adminimistério

 

Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.

 

Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.

 

Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.

Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

 

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.

 

Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?

Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?

 

Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?

 

Ali

ali 
só 
ali 
se

 

se alice 
ali se visse 
quanto alice viu 
e não disse

se ali 
ali se dissesse 
quanta palavra 
veio e não desce

ali 
bem ali 
dentro da alice 
só alice 
com alice 
ali se parece

 

 

Amar você é
coisa de minutos…

 

Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui

 

amor, então,
também acaba?
não, que eu saiba.

 

o que eu sei é que transforma
numa matéria prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.

 

                        ou em rima

 

Aqui nessa pedra

Alguém sentou

Para olhar o mar

 

O mar não parou pra ser olhado

Foi mar para tudo enquanto é lado


Aviso aos náufragos

 

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.

Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

 

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

 

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.

 

Não e assim que é a vida?

 

Bem no fundo

 

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

 

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

 

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

 

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

 


Contranarciso

 

em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas

 

o outro
que há em mim
é você
você
e você

 

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós

 

Paulo Leminski

 

Paulo Leminski (1944-1989) foi um poeta, escritor, tradutor e professor brasileiro. Fez uma poesia sem compromisso, destacou-se com “Catatau”, obra “maldita” marcada por exacerbado experimentalismo linguístico e narrativo.

Paulo Leminski Filho nasceu em Curitiba, Paraná, no dia 24 de agosto de 1944. Era filho de Paulo Leminski, militar de origem polonesa, e Áurea Pereira Mendes, de descendência africana.

Com 12 anos, Paulo ingressou no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, onde estudou latim, teologia, filosofia e literatura clássica.

Em 1963, abandonou o Mosteiro, e nesse mesmo ano foi para Belo Horizonte onde participou da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, quando conheceu Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos, criadores da Poesia Concreta.

Em 1964, publicou seu primeiro poema na revista “Invenção”, editada pelos concretistas. Nesse mesmo ano, assume o cargo de professor de História e Redação em cursinhos pré-vestibulares.

Publicava seus textos em revistas alternativas, antológicas do tempo marginal, como “Muda”, “Código” e “Qorpo Estranho”, segundo ele mesmo, publicações que consagraram grande parte da produção dos anos 70.



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