segunda-feira, 27 de junho de 2022

Coletânea Poetas Vivos

 


Dor elegante

 

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
com se chegando atrasado
andasse mais adiante

carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa, um milhão de dólares
ou coisa que os valha

ópios, édens, analgésicos
não me toquem nesse dor
ela é tudo o que me sobra
sofrer vai ser a minha última obra

 

Paulo Leminski

La vie en close (1991)

Musicado e gravado por Itamar Assumpção e Edvaldo Santana



Mamãe, coragem

 

Mamãe, mamãe não chore
A vida é assim mesmo, eu fui embora
Mamãe, mamãe não chore
Eu nunca mais vou voltar por aí

Mamãe, mamãe não chore
A vida é assim mesmo, eu quero mesmo é isto aqui

Mamãe, mamãe não chore
Pegue uns panos pra lavar, leia um romance
Veja as contas do mercado, pague as prestações

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos
Seja feliz, seja feliz

Mamãe, mamãe não chore
Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz
Mamãe, seja feliz

Mamãe, mamãe não chore
Não chore nunca mais, não adianta
Eu tenho um beijo preso na garganta
Eu tenho um jeito de quem não se espanta
Braço de ouro vale dez milhões
Eu tenho corações fora do peito
Mamãe, mamãe não chore, não tem jeito

Pegue uns panos pra lavar, leia um romance
Leia Elzira, A Morta, A Virgem, O Grande Industrial
Eu por aqui, vou indo muito bem
De vez em quando brinco carnaval
E vou vivendo assim
Felicidade na cidade que eu plantei pra mim
E que não tem mais fim, não tem mais fim
Não tem mais fim

 

Caetano Veloso/Torquato Neto

Gravada por Gal Costa


O vento varria as folhas,

O vento varria os frutos,

O vento varria as flores...

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,

O vento varria as músicas,

O vento varria os aromas....

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos,

E varria as amizades...

O vento varria as mulheres...

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De afetos e de mulheres.

O vento varria os meses

E varria os teus sorrisos...

O vento varria tudo!

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De tudo.

 

Manuel Bandeira

raptado da time line no face de Álvaro Rogério Goulart


OMITIR-SE

 

Incontestável — de dentro de suas casas

poetas deliram palavras sobre salvar a humanidade

— iguaizinhos a mim: covardes!

com as duas mãos partem os livros ao meio

peneiram filosofia moderna, movem a caneta delicadamente

como se preparassem um gâteau chiffon bem levinho

óleo vegetal, ovos, açúcar, farinha,

fermento em pó e a pura essência de baunilha®

— tudo da mais requintada e clássica gastronomia!

mas nas ruas somente o cheiro a atravessar a avenida

que aos narizes dos batalhões — não passa de bolo

 

Jessica Iancoski




lavo minhas mãos

viro as costas, apesar de ainda

olhar para trás

tiro o corpo fora

a alma deve vir depois

lavo minhas mãos

essas que estiveram sempre sujas

sempre cheias

na empreita de restaurar canteiros

de terras de autoabandono

lavo minhas mãos

condicionadamente

minhas teimosas

e domesticadas mãos

que ainda não sabem

guardar os tempos para si

lavo minhas mãos cansadas

de cuidar do que não tem cuidado

guardo nos bolsos

meus gestos ansiosos

aprendendo a ver o outro passar

sem achar que posso abrir caminhos

aprendendo a ver o outro olhar

sem achar que eu detenho a luz

e que por isso posso receber

as trevas

lavo minhas mãos devagar

reestabelecendo as fronteiras

entre os nossos destinos

 

Clara Baccarin




 SINA


Tão tarde para queimar a vela esquecida no altar da tua alma,
por dentro, os destroços de uma casa em ruínas
e uns dedos longos que escreveram poucos argumentos acima dos teus segredos:
tão breve o silêncio, sem qualquer possibilidade de dizer sobre o tempo que nunca veio...

[Aqueles que escrevem têm as unhas rasgadas pelos densos dos seus medos,
outros modos de percepção do que segue no limiar do absurdo,
perscrutando dimensões de outros mundos,
onde devaneios são sementes germinando paraísos em um universo paralelo derradeiro]

Tão fina a folha quanto a asa da andorinha em lonjuras nunca percorridas,
assim te fazes, tu que escreves das coisas jamais vistas por outros meios
que não teus ecos silenciados pelo espanto!
Aquieta teus reflexos, suspende a tua angústia uma oitava acima,
desce os olhos de dentro ao peito mais profundo,
saberás legitimar tuas verdades na mesma medida da tua necessidade mais genuína:
– Tu és aquela que nunca termina! –

[Aqueles que consomem escrituras têm as asas apartadas dos seus dorsos,
outros meios de linguagem para abarcar os sentidos do coração:
a palavra – um silêncio feito de matéria visível que desanda distante da forma exata –
amplifica os sentidos nunca d'antes conhecidos]

Depois dos tempos, dos séculos, contornos ou regressos,
serás feita da mesma essência das unhas rasgadas pelos densos dos teus tantos medos,
das mesmas asas apartadas do teu dorso,
no melhor meio de linguagem do teu voo:
– Tu és aquela que aventura asas na imensidão! –

(Nic Cardeal/2021)


poema metafisico

 

Escolha seu levante

não importa no nascer

ou no morrer,

- levite.

 

Fernando Sousa Andrade





 p u r p u r i n a

 

a calhandra grinfa

[ou trissa]

o pato gracita

o cisne arensa

o camelo blatera

a raposa regouga

o pavão pupila

a cegonha glotera

o pinto pia

a rola turturina

minha pomba gira

[e brilha]

 

[adelaide do julinho]

 

 

[ imagem ryan mcguire ]



Literofagia

 

comer a palavra

degustar

deglutir

digerir

devorar

poesia

eu bebo

eu como

Oswald de Andrade

na geleia geral

que o jornal do brasil anuncia

pelos becos botecos  pelos

bares da cidade

 literofagia 


Artur Gomes


Geleia Geral – Revirando a Tropicália

Semana de 22 – 100 Anos Depois

Dia 22 – julho -2202 – 19h

Local: Santa Paciência Casa Criativa

Rua Barão de Miracema, 81 – Campos dos Goytacazes-RJ

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